O “mercado” não descontaminará a nossa água. Em artigo, Aercio Barbosa de Oliveira, coordenador do programa da FASE no Rio de Janeiro, questiona a privatização e critica a gestão da Cedae

Aercio Barbosa de Oliveira¹

Quem acredita na velha panaceia de que o mercado é a melhor alternativa para resolver os problemas de ordem pública, se delicia com os fatos a respeito da péssima qualidade da água capturada, tratada e distribuída pela Companhia Estadual de Águas e Esgotos do Rio de Janeiro (Cedae). Desde o início deste ano, a água consumida por 9 milhões de habitantes da região metropolitana fluminense está contaminada por geosmina². Agora, no início de fevereiro, o abastecimento da água foi interrompido depois que técnicos da Cedae identificaram a presença de detergente não degradável na água que chega à Estação de Tratamento do Guandu³. Apesar da amplitude dos efeitos para a população em geral, esses episódios penalizam principalmente as pessoas que moram nas favelas, nos bairros populares e nas cidades periféricas, onde a maioria recebe um baixo salário, tem vínculo de trabalho precário ou está desempregada. Tudo isso ocorre no período em que o marco regulatório do saneamento está sendo alterado. O Congresso Nacional volta do recesso e muito em breve deverá votar, no Senado, o Projeto de Lei 4.162/2019, aprovado na Câmara dos Deputados, que modifica radicalmente o marco regulatório do saneamento cuja ideia é a de que só o mercado poderá assegurar a universalização do abastecimento de água e do tratamento do esgoto sanitário no Brasil.

Mesmo com comprovações empíricas da incapacidade do “mercado” realizar o que anuncia, não faltam apologistas do mercado para eliminar a debilidade dos serviços de saneamento e de provisão de água potável à nossa população. É muito pouco divulgado pela imprensa tradicional a quantidade de empresas de água e saneamento de diferentes países e continentes que voltaram a ser públicas. A sede por lucro das corporações ignora a sede de quem não pode pagar. Com isso as mobilizações sociais, a pressão política e as denúncias conseguiram fazer com que alguns serviços voltassem a ser públicos. É difícil encontrar no mundo uma experiência de privatização no setor exitosa.

O governo federal tem entre seus objetivos acabar com o patrimônio público, que restou da primeira onda neoliberal da década de 1990, e desconstruir as políticas públicas. A onda neoliberalizante atual conta com a adesão de muitos governos estaduais, como o do Rio de Janeiro, através de seu governador Wilson Witzel, que aprofundou os problemas operacionais e de gestão da Cedae ao nomear como presidente da empresa um ex-integrante do conselho diretor da mineradora da Samarco, Hélio Cabral⁴ – exonerado no dia 10 de fevereiro, mais de um mês após a população fluminense denunciar a má qualidade da água.

Entre a precarização e a privatização

Garantir que uma empresa continue pública não é o suficiente para se ter um serviço de qualidade e universalizado. A Cedae, infelizmente, mesmo antes das recentes ocorrências, não tem dado exemplos de boa gestão pública, considerando que a garantia de lucro não pode ser o principal ou único critério para definir a boa gestão de uma empresa pública. Sabemos que a Cedae é uma empresa superavitária, no entanto, os mecanismos que definem os investimentos são turvos como a água bruta captada na ETA Guandu.

Faz tempo que movimentos sociais lutam pela universalização do abastecimento de água e pelo tratamento do esgoto. A intermitência do abastecimento de água em cidades da Baixada Fluminense e seus índices de tratamento de esgoto perto de zero são casos emblemáticos de intensa mobilização social. A população que mais sofre com a falta desses serviços não tem canais para contribuir na definição dos investimentos da empresa e, pouco menos, para monitorar como os recursos são executados. A Cedae segue a lógica da seletividade das políticas públicas: os serviços com melhor qualidade ficam para as áreas onde vivem famílias com melhores condições econômicas. Enquanto isso, nas periferias, em cidades iguais a Japeri, Queimados, São João de Meriti e tantas outras, o abastecimento de água é irregular e o tratamento de esgoto inexistente ou é muito precário. São situações que aprofundam a desigualdade e a perpetuação do racismo ambiental.

Toda essa cadeia de problemas, em que pese a determinação e empenho dos trabalhadores da Cedae, que procuram dialogar com a sociedade e o conjunto dos movimentos sociais para que a empresa tenha uma dinâmica de funcionamento adequada ao interesse público e popular, parece injustificada para uma empresa tão lucrativa. Em 2018, por exemplo, o lucro líquido da Companhia foi de R$ 832 milhões, quase o triplo do ano anterior. Não é à toa que o atual governador do estado e seu secretário de finanças, em algum momento, refutaram, contrariando a equipe econômica do governo federal, o propósito de privatizar a Cedae ou fazer concessões que impactem a sua lucratividade. O lucro da Cedae é um importante recurso para atenuar as consequências da combalida finança do governo estadual, que é o principal acionista da empresa, detendo 99% das suas ações.

Mobilização popular em defesa da água

A recente crise hídrica não pode servir aos abutres privatistas, mas também não é possível ignorar os problemas de gestão da empresa, que só contribuem para deteriorar a estrutura e os serviços prestados por ela. Esta crise deve servir, no mínimo, para se debater e qualificar como uma empresa pública deve funcionar e problematizar outras questões envolvendo a água. Questões que precisam da articulação de diferentes movimentos sociais, coletivos, pesquisadores(as) e organizações da sociedade civil, que assumem em suas agendas de lutas diferentes dimensões de acesso, uso e relação com a água. Na Região Metropolitana do Rio de Janeiro (RMRJ) a experiência de preparação do Fórum Alternativo Mundial da Água (FAMA), realizado em março de 2018, quando ocorreu a Assembleia Popular da Água, diferentes atores políticos apresentaram suas experiências, proposições e indicaram os conflitos envolvendo a água e o saneamento, na própria assembleia e nas atividades preparatórias. Foi uma experiência positiva que estabeleceu uma coalização popular, assumiu a água como um bem comum e um direito humano que não pode ser subordinado à lógica mercantil.

O agravamento do abastecimento hídrico parece exigir uma coalização ou um espaço equivalentemente amplo para tratar das distintas questões relacionadas ao tema. O Rio Paraíba do Sul é a principal fonte de água bruta da ETA Guandu, responsável pelo abastecimento de 70% da população da RMRJ. Nele, empresas despejam seus efluentes sem fiscalização adequada e em suas margens há rejeitos industriais e outros tipos de poluentes que podem impossibilitar que as águas sejam tratadas para o consumo humano, agravando a nossa vulnerabilidade hídrica. Nesse sentido, é preciso, em diálogo com os diferentes segmentos da sociedade, encontrar alternativas para a captação e distribuição de água, capazes de reduzir a nossa dependência do Rio Paraíba do Sul; precisamos debater e assegurar que o acesso à água esteja garantido para diferentes práticas, usos e modos de vida – por exemplo a agricultura urbana, a agroecologia, etc., precisam ter meios para ampliar a sua produção.

A água não pode ser capturada para servir quase que exclusivamente a industrias, ao agronegócio ou famílias residentes em condomínios de luxo. Menos ainda, deve atender a ideologia desenvolvimentista, permitindo que empreendimentos econômicos de grande escala acabem com mananciais e contaminem as águas da superfície e/ou subterrâneas. Da mesma forma, mecanismos de adaptação e mitigação dos efeitos das mudanças climáticas nas cidades precisam, urgentemente, ser debatidos e implementados: os sistemas de drenagem das cidades mais populosas estão saturados, o solo impermeabilizado, os rios assoreados transbordam com chuvas um pouco mais intensas causando mortes e danos irreparáveis. Esses são alguns pontos entre tantos que poderiam ser descritos.

Então, diante de um cenário de desconstrução de políticas sociais, de busca insana para entregar ao mercado bens e serviços públicos, de mercantilizar todos os domínios da vida e da natureza, de ataque ao sistema de participação e controle social e, especialmente, no estado do Rio de Janeiro, em que o governo assume o uso da violência como política, a construção de uma coalização do campo popular em defesa da água como um bem comum, como direito humano, como alimento, como um bem sagrado para diferentes religiões e culturas é urgente e necessária. Esta parece ser uma tarefa incontornável àqueles(as) que defendem a biodiversidade, o direito à cidade, a justiça social e ambiental, e uma democracia substantiva.

[1] Educador popular, coordenador do programa da FASE no Rio de Janeiro e integrante do Grupo Nacional de Assessoria (GNA) da FASE.

[2] Substância química. Composto orgânico produzido pela bactéria Streptomyces coelicolor, espécie de actinobactéria presente no solo.

[3] A Estação de Tratamento de Água do Guandu (ETA Guandu) atende os municípios: Nilópolis, Nova Iguaçu, Duque de Caxias, Belford Roxo, São João de Meriti, Itaguaí, Queimados e Rio de Janeiro.

[4] Antes de atuar na Cedae Hélio Cabral fez parte do Conselho da Samarco S.A. como representante da Vale S. A., e é um dos indiciados pelo Ministério Público pelo crime de Mariana, devido à acusação de saber dos riscos aos quais a barragem de Feijão estava exposta e não ter tomado providências.

 

Fonte: https://fase.org.br/pt/informe-se/artigos/o-mercado-nao-descontaminara-a-nossa-agua/