Educação a Distância (EaD): será que com ela aumentamos ou diminuímos as nossas distâncias e desigualdades?

Débora Foguel – Instituto de Bioquímica Médica Leopoldo de Meis– Universidade Federal do Rio de Janeiro

Desde de que mergulhamos na presente pandemia, a suspensão das aulas escolares ou universitárias nos trouxe a questão de como continuar a ensinar para nossos alunos e alunas, uma vez que estamos isolados em nossas casas, provavelmente por um longo período de tempo, e continuar a ensinar parece ser necessário.

A solução para este impasse foi dada de forma relativamente rápida e consensual por alguns secretários e reitores: valhamo-nos do ensino a distância utilizando as plataformas de ensino ou de reuniões já existentes e disponíveis. Mas, certamente, essa solução gesta em si uma série de questões não tão simples nem de resolução tão óbvia. Mais uma vez, leitor(a), devo-lhes confessar que não sou especialista nesse tema e aqui lhes escrevo do lugar de uma professora universitária confinada que vem pensando sobre o tema desde então, e, quando posso, leio um pouco sobre o mesmo. Além disso, devo declarar, que tenho me reunido virtualmente com meus alunos da graduação e da pós graduação, porque acredito que estar perto dos alunos nesse momento, de alguma forma, não necessariamente ministrando minhas disciplinas, é muito importante e é por isso que o tenho feito.

Para ajudar a que nos posicionemos sobre fazer uso ou não do ensino a distância nesse momento, lhes convido a, – a partir da análise de alguns indicadores -, pintar um quadro junto comigo que retrate a realidade dos nossos alunos e professores. Certamente, esse quadro estará longe, muito longe, de espelhar toda essa complexa realidade, mas um esboço, mesmo que esmaecido e unidimensional, talvez já nos sirva. Quero também enfatizar que os aspectos que abordarei aqui são aqueles de cunho prático, mas há, certamente, outros aspectos mais importantes e até mais profundos que permeiam a questão da educação a distância, que, se eu tiver competência, procurarei endereçar num próximo artigo.

Os indicadores que usaremos para nos ajudar a pintar tal cenário são da pesquisa TIC de domicílios de 2018 (www.data.cetic.br), uma pesquisa riquíssima e que contêm muitos elementos que serviriam para escrevermos vários artigo e adicionar novos elementos ao nosso quadro tornando o mesmo mais complexo e real. Mas aqui usarei apenas um sub-conjunto desses resultados que já nos ajudarão a entender o perfil daqueles para quem estaríamos oferecendo essas aulas a distância, em especial para os professores das redes públicas de ensino, sejam da educação básica ou superior. Vamos lá!

Iniciarei por apresentar a porcentagem de domicílios que possuem TV, telefones celulares (TC), computadores de mesa (CM) e computadores portáteis (CP) nas cinco classes de renda no Brasil (classe A – classe mais abastada e classes D/E – classes menos abastada):

Classe A – 100% (TV), 100% (TC), 67% (CM) e 90% (CP)

Classe B – 100% (TV), 100% (TC), 48% (CM) e 73% (CP)

Classe C – 97% (TV), 95% (TC), 19% (CM) e 27% (CP)

Classes D/E – 92% (TV), 84% (TC), 2,0% (CM) e 2,0% (CP)

Possui TV e telefone celular é algo que prevalece nos domicílios brasileiros, independente da classe. No entanto, vemos que os computadores portáteis já superam em número os computadores de mesa nas classes A-C, embora nos domicílios da classe C ainda existem poucos desses equipamentos. Mas, o que é muito impressionante é a inexistência de computadores, de qualquer tipo, nas famílias das classes D/E.

Com respeito a ter acesso à internet, enquanto mais de 95% dos domicílios das classes A e B têm acesso à internet, essa porcentagem cai para 76% e 40% nas classes C e D/E. E, apenas 35% das classes D/E têm acesso à banda larga fixa, porcentagem que sobe para 81% e 87% nas classes B e A. Contrariamente, 73% das domicílios das classes C e D/E acessam a internet em seus domicílios através de conexão móvel via modem ou chip 3G ou 4G, ao passo que as classes A e B apenas 21%, já que esses domicílios possuem banda larga fixa. Ou seja, as classes mais empobrecidas usam a internet em suas casas nos seus celulares, até porque, como visto anteriormente, elas não têm computadores em seus domicílios.

Trago ainda um último indicador importante para podermos construir o cenário onde se instalaria o ensino a distância no Brasil, que é o dado de que em cerca de 60% dos domicílios da classe A há mais de dois notebooks, ao passo que 67% dos domicílios das classes D/E terem zero desse tipo de equipamento (na classe C, 44% dos domicílios tem zero notebook). Ou seja, se um aluno, universitário ou do ensino básico dos domicílios das classes C, D/E que, em média, têm 3 ou mais pessoas por cômodo precisar se isolar, mesmo que seja na rua ou quintal, para ouvir uma aula ou estudar, não terá notebook para levar consigo. Terá de faze-lo pelo celular, que é, de fato, o equipamento mais utilizado por essas famílias para acessar a internet.

Frente a esse conjunto rudimentar de indicadores que lhes apresento, deixo-lhes um desafio: quem conseguiria fazer um curso e aprender matemática, história, ciências, bioquímica, cálculo diferencial, seja lá o que for, com um bom desempenho e aprendizado recebendo esse curso pelo celular, numa casa com muitos familiares por cômodo e com conexão lenta? Lembro-lhes que desse cenário ficaram de fora a fome, os estresses tóxico, a falta de saneamento, a falta de água, a falta do asséptico álcool em gel, e tantas outras faltas, inclusive a de sonhos. Esse quadro não é o que se possa pintar para os alunos das classes A e B…Será, então, que oferecer aulas a distância nesse cenário e nesse contexto aumentaria ou diminuiria a distância abissal que já existe entre os alunos brasileiros? Tenho a minha resposta, mas deixo a questão em aberto para que cada um reflita…

Antes de terminar, quero ainda adicionar mais um dado para nos ajudar a agregar elementos nesse quadro que estamos juntos a pintar evocando outros resultados da mesma pesquisa TIC a que me referi acima. Trata-se do indicador que aponta as escolas urbanas que possuem professores que receberam formação para o uso de computador e internet em atividades de ensino e aprendizagem. Já lhes adianto que, até onde vão meus conhecimentos, na universidade esse indicador é igual a zero, ou seja, não recebemos qualquer formação para o uso de ferramentas de ensino a distância. Saber programar, usar computador, internet, programas sofisticados não é o mesmo que saber ensinar a distância, vale lembrar!!! Mas, no caso das escolas, minha análise foi baseada nas cinco regiões do país e que aparecem discriminadas na pesquisa. Vejamos as porcentagens de professores que não receberam nenhuma formação ou treinamento nessas metodologias: 65% na região norte, 58% no nordeste, 61% no sudeste, 44% no sul e 64% no centro oeste. Ou seja, também nós, professores, do ensino básico e superior, não fomos preparados e treinados para utilizar essas metodologias antes, e, agora, em plena pandemia, dificilmente teremos condição de ensinar com propriedade.

Enfim, não sou avessa a tecnologias e ferramentas digitais e as tenho usado para “encontrar” com meus alunos, como lhes contei no início. Mas fico, sim, bastante preocupada com a adoção do ensino a distância nesse momento e nesse cenário que lhes delineei, onde estamos todos muito estressados, alunos, professores e famílias. Já há alguns, inclusive, falando que esse será um legado desta pandemia! Será mesmo? A Educação, em especial a básica, deve ser mesmo praticada nesse formato a distância? Onde entram as famosas competências sócio-emocionais? Será que usaremos essa “experiência educacional pandêmica” para baratear e sucatear o já combalido ensino básico e superior brasileiro? Vozes no MEC já anunciam esse “auspicioso projeto”… Isso, espero, que não venhamos a permitir!

Fonte: https://blogs.oglobo.globo.com/ciencia-matematica/post/educacao-distancia-ead-sera-que-com-ela-aumentamos-ou-diminuimos-nossas-distancias-e-desigualdades.html?utm_source=Facebook&utm_medium=Social&utm_campaign=compartilhar&fbclid=IwAR2Vp_DnTAMFhCnZ___BiB55NKDBzf0FQyK7V_L8rVgxIryeLN_dzWBnMQo