DA “GOURMETIZAÇÃO” DA TEORIA DECOLONIAL: O QUE A RAÇA TEM A VER COM ISSO?[I]

Diego Lopez Medina, em sua “teoria impura do direito”, procurou mostrar como o mesmo autor ou a mesma teoria era, de fato, recepcionada, de forma diferente, por determinado país. Assim, Kelsen ou Cossio não eram vistos, pelos mesmos parâmetros, na Argentina, na Colômbia ou mesmo no Brasil, para dar alguns exemplos. É algo que, intuitiva ou de forma analítica, alguns doutrinadores, no Brasil, sustentam em relação à “teoria dos princípios e regras” e sua utilização para interpretação e conflito de normas constitucionais, em especial por meio da jurisprudência dos tribunais nacionais.

Desde pouco antes da morte de Quijano, que, destacando a presença, junto ao processo de modernidade, da colonialidade do poder, a teoria decolonial foi -se tornando popular nos meios acadêmicos no país. Paradoxalmente, foi a questão epistemológica, na análise da “colonialidade do saber”, destacando o eurocentrismo das posições filosóficas e políticas, que se tornou a versão mais difundida. E,aqui,.é visível o processo de desracialização da própria discussão.

Porque, em Quijano, Rita Segato e outrxs teóricxs da colonialidade, esta não existe separada da modernidade, ou seja, é sua cara oculta, mas, por sua vez, não há colonialidade sem frisar-se que a modernidade se assenta no conceito de raça e, portanto, numa classificação social que, mesmo em termos de discussão de gênero, estabelece uma diferenciação entre superiores e inferiores. Falar em “colonialidade do saber”, neste sentido, é destacar o racismo epistêmico, a produção racializada do conhecimento, a forma como se praticam epistemicídios e, portanto, áreas de “apartheid epistêmico” ( Reiland Rabaka).. Falar em colonialidade do poder é mostrar como raça informa os parâmetros de um poder heterogêneo estruturalmente, mas que não pode ser separado do capitalismo. Por isso, em Quijano, raça, modernidade e capitalismo nascem no mesmo dia.

O processo de disseminação da teoria é, desta forma, uma “gourmetização”: hoje em dia, é cada vez mais comum, trabalhar colonialidade sem raça, destacar racismo sem nominar raça e, nestas mesmas circunstâncias, falar de gênero sem sexualidade. Como bem destacam as feministas negras- e aqui, poderia destacar Yuderkis e Ochy, as opressões são consubstanciais. Mas, do lado de cá- das ex-colônias-, como bem destaca Sueli Carneiro, raça informa gênero e, da mesma forma, classe.

Daí  a importância de pensar, a partir da experiência de nosso continente, como vem fazendo Yuderkis-  “como chegamos a ser as feministas que somos?”-questionar como chegamos a ser os decoloniais que somos no Brasil, o país que apaga a presença da discussão da raça em nome da “democracia racial”.

Nos últimos anos, tem-se insistido, com novas epistemologias ou mesmo “teorias do sul”, de forma similar, ao salientar a presença simultânea de capitalismo, colonialismo e patriarcado, o que acaba, paradoxalmente, em esquecer  gênero e raça no mesmo momento de sua enunciação. Parafraseando Roberto Lyra Filho, que dizia que a teoria do direito citava as fontes materiais do direito para as esquecer no momento seguinte, é a capacidade de situar o problema apagando a sua densificação, ou seja, a transformação de teorias e discussões potentes em versões assépticas. Era a ironia “lyriana” de denominar nosso processo de “demogracinha”.  A presença é, na verdade, a enunciação da ausência, da impossibilidade de nominação de gênero e raça, contribuindo para uma versão de baixa intensidade de direitos humanos.

Abdullahi Na-na’im, a partir da tradição islâmica, costuma enfatizar:

Se, por exemplo, quero falar sobre direitos humanos, liberdade de pensamento e racionalidade, porque deveria citar alguém como Kant? Por que não posso, como muçulmano, citar Ibn Rushd, que disse e escreveu as mesmas coisas centenas de anos antes de Kant? Esta é, para mim, a melhor forma, para nós, no mundo islâmico, de reavivar o debate sobre direitos humanos, individualismo, racionalidade e liberdade de pensamento e expressão. E é isto que eu entendo por desprender-se da dependência dos direitos humanos, que tem, pelo menos no passado, nos forçado a discutir o significado de direitos humanos em termos que não são, necessariamente, locais ou que não nos são próprios.”

Neste sentido, tenho insistido-e Thula Pires no mesmo sentido-  que os conceitos de amefricanidade e de quilombismo têm um potencial imenso para transportar a discussão mais potente da colonialidade para os nossos referenciais efetivos do Sul Global, a partir de nossa realidade de “racismo por denegação” ( Lélia González). É a necessidade de fazer nossas teorias falarem “pretoguês”, um idioma que mostra as marcas de africanidade e indianidade que a língua culta oculta permanentemente.

Se, em outros trabalhos, insisti na amefricanidade, incorporando, nas palavras de Lélia, um “processo histórico de intensa dinâmica cultural (adaptação, resistência, reinterpretação e criação de novas formas) que é afrocentrada” e no quilombismo, a partir de Abdias do Nascimento, aqui, para problematizar outras questões, seria interessante pontuar Beatriz Nascimento, com sua ressignificação de quilombo, a partir da pesquisa como historiadora.

Para ela, interessava o quilombo não como “reduto de negros”, mas como “organização política e social” e sua preocupação não era, portanto,  “narrar acontecimentos do passado, mas estabelecer o que há de continuidade entre o passado e o presente do negro do Brasil”.  Não somente a “capacidade de fugir”, mas de “criar uma sociedade alternativa, com valores próprios, diferentes dos valores dominantes na sociedade em que os negros foram integrados à força”.  Daí sua preocupação, não como a “rebelião em si”, mas com a “paz quilombola”, aos momentos de desenvolvimento social e  econômico dos quilombos.[ii]

Neste processo de rebelião e de criação, mas também de manutenção da colonialidade das estruturas, é que Beatriz vai destacar, já em 1976, que o negro ocupava os espaços que lhe permitiam ocupar, mas que tinha “coisas a reintegrar também, coisas que são suas e que não são reconhecidas como suas características” e, desta forma, “o pensamento, por exemplo”.

Ficava chocada, portanto, “quando se dá ao branco a cabeça, a racionalidade e ao negro, o corpo, a intuição, o instinto”, esquecendo que o “negro tem emocionalidade e intelectualidade, tem pensamento como qualquer ser humano”, precisando “recuperar o pensamento que é também seu, mas que foi apoderado pela dominação” e por aí “vamos chegar à discussão da posse do conhecimento”. Um questionamento ao eurocentrismo e, portanto, à injustiça cognitiva que afetava, desproporcionalmente, negros e negros não vistos como pensadorxs. Um racismo epistêmico, portanto. A necessidade, desta forma, de revisar conteúdos, parâmetros, cosmosensações, programas de disciplinas, um movimento que encontra eco na crítica à “sociologia enlatada” ou “consular”, efetuada por Guerreiro Ramos.  Mas também de assumir uma postura combativa de “reintegração de posse” dos conhecimentos usurpados pela dominação e pelos processos de colonialidade.

É interessante associar que Quijano, no extenso artigo sobre classificação social, sugeria que raça estava tão presente no imaginário como se fosse “natural e material”, porque implicava algo muito material, o corpo humano e, assim, a corporalidade era “o nível decisivo das relações de poder”, porque “corpo’ implica a ‘pessoa’, se se libertar o conceito de ‘corpo’ das implicações mistificadoras do antigo ‘dualismo’ eurocêntrico, especialmente judaico-cristão (alma-corpo, psique-corpo, etc.)”. Na exploração, “é o ‘corpo’ que é usado e consumido no trabalho e, na maior parte do mundo, na pobreza, na fome, na má nutrição, na doença”, é o corpo o “ implicado no castigo, na repressão, nas torturas e nos massacres durante as lutas contra os exploradores”

Assim, “o lugar central da ‘corporeidade’ neste plano leva à necessidade de pensar, de repensar, vias específicas para a sua libertação, ou seja, para a libertação das pessoas, individualmente e em sociedade, do poder, de todo o poder”, e a “ experiência histórica até aqui aponta para que há outro caminho senão a socialização radical do poder para chegar a esse resultado”, significado “a devolução aos próprios indivíduos, de modo directo e imediato, do controlo das instâncias básicas da sua existência social: trabalho, sexo, subjectividade e autoridade”.

Será no documentário “Ori” que Beatriz vai destacar que o negro é ligado à terra, e “o filho de santo quando tem que entrar num recinto de maior fundamento ou no terreiro tem que estar descalço”, para que a “energia seja captada pelo corpo”. Se, por um lado, quilombo “´é memória que não acontece somente para os negros, mas para nação” e que “aparece nos momentos de crise de nacionalidade”, por outro, a “memória são conteúdos de um continente, da sua vida, da sua história e de seu passado”, como se “o corpo fosse o documento”.

Se “Ori” significa  a iniciação de um novo estágio da vida, a uma nova vida, um novo encontro”, ele se estabelece como rito “somente para aqueles que sabem fazer com uma cabeça se articule consigo mesma e se complete com seu passado, com seu presente, com seu futuro, com a sua origem e com seu momento ali”. Não parece coincidência que a execução extrajudicial de Marielle Franco a tenha atingido com quatro tiros na cabeça. Porque, para o capitalismo racial (Cedric Robinson) heterocentrado, não basta a eliminação física: é necessário exterminar também o “ori”, mostrar  a necessidade de corporalidades indesejadas pela colonialidade, de corpos que são “saberes impertinentes” e questionadores da necessidade da “reintegração de posse”.

Como pensar direitos humanos em tempos de capitalismo racial heterocentrado? Como destacar a potência decolonial de corpos e saberes indesejados que “poluem” o espaço público? O espaço supostamente cívico, mas que estabelece quais corpos podem nele estar e ser representados. O espaço, na realidade, da colonialidade e não da democratização. Que invisibliza raça e gênero, tornando assépticas as teorias de direitos humanos.

Pensar direitos humanos, neste sentido, é destacar: (a) que decolonialidade não pode se converter em “commodity”; (b) o que perdemos quando abdicamos de uma categoria- central!- como raça, para tratar de pensamento, teoria e práxis decolonial.

 

Notas e Referências

[i]                      O título remete, por questões afetivo-epistêmicas, a “What’s Love got to do with it” ( Tina Turner, 1984) e à entrevista “What’s passion got to do with it”( bell hooks, “Outlaw culture”, 1994).

[ii]                     Agradeço à historiadora Ana Flávia Magalhães Pinto (UNB) pela lembrança desta extraordinária entrevista de Beatriz Nascimento à revista Manchete, setembro de 1976, publicada  em NASCIMENTO, Beatriz. Beatriz Nascimento, quilombola e intelectual; possibilidade nas dias da destruição.São Paulo: Filhos da África, 2018, p. 97-103. “Reintegração de posse” é o mote do próximo “Latinidades”, a ser realizado em Brasília, de 22 a 28 de julho de 2019, evento elogiado, recentemente, por Patricia Hill Collins e Sirma Bilge (“Intersectionality”, Polity, 2016). E foi também utilizado na campanha de Erica Malunguinho ao cargo de deputada estadual por São Paulo.  Disponível em https://www.facebook.com/Festivallatinidades/videos/vb.332015393574464/307142689979493/?type=2&theater.

 

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COLUNISTA
CÉSAR AUGUSTO BALDI

César Augusto Baldi é mestre em Direito (ULBRA/RS), doutor em Direietos Humanos pela Universidad Pablo Olavide (Espanha), organizador dos livros “Direitos humanos na sociedade cosmopolita” (Ed. Renovar, 2004) e “Aprender desde o Sul” (ed. Forum, 2015)..

 

Fonte: https://emporiododireito.com.br/leitura/da-gourmetizacao-da-teoria-decolonial-o-que-a-raca-tem-a-ver-com-isso-i?fbclid=IwAR3HNnOqRmXBUmUiauDlDRh8-HdIqdy8e4nyuG_B_U3CKT35G8sSm3cBVYg#.YQAP6bYw7fg.facebook