Mães de transgêneros compartilham os desafios das mudanças nos corpos dos filhos

Médicos e psicólogos afirmam que apoio da família “pode salvar vidas”

Por Eduardo Vanini

Assim que terminou de ler a tese da filha, a aposentada Maria do Carmo, de 69 anos, passou a mão no celular e enviou a ela um áudio pelo WhatsApp. “Isso significa que você é uma mulher trans?”, perguntou, com a voz preocupada, após devorar as páginas que falavam sobre teoria de gênero e cena drag no Rio, com passagens autobiográficas. Ao responder que sim, a moça recebeu uma nova mensagem de voz: “Estou aqui para entender. Não vou te largar, você é minha filha”.

Era o que faltava para a atriz e escritora, de 33 anos, sentir-se segura para levar adiante a transição de gênero, concluída com uma homenagem a quem lhe deu à luz. Na hora de retificar os documentos, escolheu o mesmo nome da mãe, sem abandonar aquele que recebeu ao nascer. Passou a se chamar Maria Lucas. “Enfrentei um quadro depressivo provocado pela forma como a sociedade trata os nossos corpos. Só não me matei porque escrevi um livro (‘Esse sangue não é de menstruação, mas de transfobia’, editora Urutau) e por causa da relação com a minha mãe. É quando você entende que realmente importa para alguém”, conta a jovem, dizendo-se privilegiada. “Entre as minhas amigas travestis, talvez nenhuma tenha o mesmo apoio.”

Um amparo cujo valor é reconhecido por profissionais da saúde que atendem a essa população. Segundo o endocrinologista Daniel Gilban, à frente de um projeto para tratar da hormonização e da saúde mental de jovens transgênero no Hospital Universitário Pedro Ernesto, atitudes como a de Maria do Carmo incidem sobre a qualidade de vida dos pacientes. “Essas pessoas já sofrem muito, e não ter o apoio da família e dos amigos é grande parte disso”, afirma. “É uma população com altos riscos de depressão e até suicídio. Portanto, o acolhimento familiar salva vidas.”

Maria do Carmo, ou Carminha, como é mais conhecida, nem consegue se imaginar agindo de outra maneira. Para apoiar a filha da melhor forma possível, buscou ajuda no grupo Diversidade Católica, voltado à população LGBTQIAP+, desde que a moça saiu do armário pela primeira vez, inicialmente como um homem gay. “Quando a Maria tinha uns 17 anos e falou que era viado, quase morri. Mas logo depois aceitei, e ela virou um viado lindo, que agora foi-se embora… Passou a ser uma mulher linda”, diz, aos risos.

Enquanto os debates sobre gênero e identidade avançam, algumas mães tentam decifrar os sinais emitidos ainda na infância. É o caso de Thamirys Nunes, autora do livro “Minha criança trans?” e mãe de Agatha, de 7 anos. Ela conta ter percebido o desconforto da garota com o gênero que lhe fora atribuído ao nascer desde os 2 anos. Aos 4, a compreensão ficou ainda mais clara diante de frases como “se eu morrer, posso nascer menina?” ou “me chama de filha só hoje para eu ficar feliz?”. “Entendemos que era algo profundo e buscamos ajuda”, narra a mãe, que acionou psicólogos e, embora seja moradora de Curitiba, encontrou no ambulatório Transdisciplinar de Identidade de Gênero e Orientação Sexual, do Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo, o caminho a ser percorrido.

Segundo ela, desde que a filha assumiu a identidade desejada e teve a certidão de nascimento retificada, deixou de ser uma criança com sinais de tristeza profunda para se tornar alegre e extrovertida. “Ela ainda é pequena para fazer qualquer tratamento hormonal. Agora, o que podemos oferecer é o nome social, os brinquedos, as roupas e os acessórios de que gosta. A primeira coisa que pediu foi uma camisola, depois, os brincos”, diz a mãe, que criou o perfil @minhacriancatrans, onde tem 78,6 mil seguidores, para mostrar os avanços da menina e ampliar o debate sobre o assunto.

Tornar essa história pública, porém, requer determinação. Thamirys é frequentemente atacada nas redes e move cinco ações na Justiça contra pessoas que considera terem passado dos limites. “Resolvi tornar a nossa história pública justamente por perceber como se falava pouco sobre o assunto e havia mais famílias precisando de ajuda. Em meio aos ataques, doeram mais as agressões feitas por pessoas próximas, que me acusam de ser disfuncional ou de influenciar minha filha. Fora isso, simplesmente apago os comentários e sigo em frente. Não bato boca. Não dá para colher rosas sem tocar nos espinhos.”

Se Agatha é muito pequena para iniciar os tratamentos hormonais, algo que começa a ser discutido somente com a chegada da puberdade, o cineasta Vicente Bem Medeiros, de 34 anos, tem a hormonização religiosamente acompanhada pela mãe, a empreendedora Mônica Vieira, de 61. “Sempre falo com ele sobre a importância de estar em dia com saúde. Digo: ‘Você precisa pensar no homem que deseja ser quando chegar aos 60 anos’”, salienta a mãe, que também passou a comprar cuecas para o rapaz, desde que ele saiu do armário pela terceira vez. Primeiro, como mulher bissexual; depois, como “sapatão”; e, por fim, como trans masculino. “Quando conversamos sobre isso, falei: ‘Vamos para a parte técnica para eu não errar’”, recorda-se Mônica, sobre o interesse em saber como o filho gostaria de ser tratado. “Pedi pelo menos um ano e disse para não ficar triste se eu errasse o nome, já que estava treinando. Não posso dizer que é fácil, mas amo tanto o meu filho, que não conseguiria agir de outra maneira que não fosse acolhê-lo.”

Diante do empenho da mãe em se inteirar das mudanças, Vicente a pediu que o ajudasse na escolha de seu novo nome, experiência que os aproximou ainda mais durante o processo. “Foi muito simbólico, já que considero um renascimento”, afirma o cineasta. “Sempre tive o apoio dela, e isso é encorajador. Afinal, por mais difíceis que as coisas fiquem, você tem um lugar para onde voltar.”

Histórias do tipo corroboram um comportamento observado pelo psicólogo João Henrique de Sousa Santos no trabalho como coordenador do Ambulatório de Saúde Mental de Atendimento às Pessoas Trans do Centro Universitário de Belo Horizonte. Segundo ele, as mães transicionam junto com os filhos, de certa forma. Isso porque a maternidade é cercada por idealizações ligadas aos padrões impostos pela sociedade, como a velha história do quarto azul para meninos, e rosa para meninas. “Uma pessoa trans é alguém que cruza essas idealizações e vai produzir outros modelos de existência”, afirma. “Para muitas mães, isso é difícil justamente porque elas se sentem feridas nessas expectativas. Mas aquela que acolhe passa a se posicionar com outra perspectiva diante da própria maternidade, que transcende a dimensão biológica e passa a ser algo político.”

João diz que isso acontece porque elas também são questionadas sobre as mudanças por pessoas próximas. Não é de se estranhar, portanto, que muitas busquem unir forças e criem mecanismos como a ONG Mães pela Diversidade. Fundada há oito anos em São Paulo por apenas uma mãe, a iniciativa reúne atualmente cerca de duas mil participantes em todo o Brasil, dispostas a dialogar com mulheres que tenham filhos LGBTQIAP+ e precisem de ajuda. “Estimo que, a cada cinco mães que nos procuram, três têm filhos e filhas trans”, comenta a coordenadora da ONG em São Paulo, Clarice Cruz Pires. “Por isso, criamos um grupo exclusivo para elas.”

Segundo a coordenadora, a transfobia e a violência são as maiores fontes de medo e insegurança para essas mães. Boa parte teme, ainda, a rejeição pelo restante da família. Por isso, Clarice costuma reiterar que precisam de tempo para conseguir lidar com a situação. “Não podemos achar que, ao chegarem até nós, estarão na Parada LGBTQIAP+ no mês seguinte”, ilustra, dizendo que o trabalho já fez com que algumas desistissem de abandonar os filhos. “Entendemos a origem do sofrimento, vamos conversando e indicamos ajuda psicológica, se necessário. Quando elas se mostram aptas a avançar, permitimos que entrem num grupo de WhatsApp com 190 participantes, onde podem tirar dúvidas sobre como ajudar os filhos na transição.”

O medo da violência, de fato, foi citado por todas as mães entrevistadas nesta reportagem, assim como a felicidade dos filhos foi invariavelmente mencionada como combustível para seguirem em frente. Vera Lúcia, de 67 anos, é mãe da professora Dani Balbi, de 33, e foi ela mesma quem cuidou da moça, após a cirurgia de confirmação de gênero, feita há cinco anos, graças aos anos de atuação como técnica em enfermagem. Uma história que enche ambas de orgulho. “É um procedimento muito delicado, e minha mãe ficou o tempo todo ao meu lado, fazendo os curativos, ajudando na minha recuperação”, recorda-se a professora.

Vera lembra que, na época, não foi avisada sobre a cirurgia na véspera. “A Dani não queria que eu ficasse preocupada, pois sou hipertensa”, narra. A filha só telefonou para relatar a novidade quando já estava no quarto e havia acordado da anestesia. O diálogo travado naquele instante jamais será esquecido. “Quando atendi, ela disse que havia dado tudo certo e completou: ‘Sou a mulher mais feliz do mundo’. Na mesma hora, pensei: ‘Então, sou a mãe mais feliz do mundo’.”

Fonte: https://oglobo.globo.com/ela/gente/noticia/2022/05/maes-de-transgeneros-compartilham-os-desafios-das-mudancas-nos-corpos-dos-filhos.ghtml?utm_source=globo.com&utm_medium=oglobo