Covid-19: especialistas discutem rumos da educação brasileira após fim do isolamento social

O GLOBO ouviu quatro referências no assunto para responder a sete perguntas sobre o sistema educacional do Brasil no cenário pós-pandemia

Audrey Furlaneto

RIO — Com mais de 130 mil escolas fechadas, cerca de 47 milhões de alunos estão sem aulas presenciais desde o fechamento das instituições para conter a propagação do novo coronavírus no país, segundo estimativa do coordenador de desenvolvimento humano do Banco Mundial para o Brasil, Pablo Acosta.

Com a data da volta às aulas ainda em aberto, pais e educadores debatem os rumos da educação com o fim da quarentena. Diante do cenário incerto, o governo editou uma medida provisória que dispensa as escolas de cumprir os 200 dias letivos — mas mantém a carga horária de 800 horas. Para especialistas, condensar o aprendizado em menos dias não é a saída.

Para tratar deste e de outros temas, como o ensino à distância, a formação dos professores e o papel dos pais na educação dos filhos, O GLOBO convidou Daniel Cara, professor da Faculdade de Educação da USP e membro da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, Andrea Ramal, doutora em Educação pela PUC-Rio, Priscila Cruz, presidente do movimento Todos Pela Educação, e Catarina de Almeida Santos, professora da UnB e pós-doutoranda em Educação pela Unicamp. Os especialistas respondem a sete questões sobre a educação no Brasil pós-pandemia.

  1. Qual é a saída para garantir o aprendizado do ano letivo, e não só pensar em cumprir carga horária? Será preciso repensar o modelo de carga horária/distribuição de conteúdos?

Andrea Ramal: O ensino atual não deveria ter como referência a quantidade de conteúdos, e sim as competências: os conhecimentos, habilidades e atitudes que os estudantes desenvolvem. Aprender é um processo, não adianta condensar o aprendizado em menos dias e muitas horas diárias. Se os alunos ficarem mais tempo sem ir à escola, é melhor relativizar o “ano letivo” e reorganizar as etapas de aprendizagem em módulos.

Catarina de Almeida Santos: Teremos que repensar tudo, carga horária, conteúdos, reorganização do ano letivo, com possibilidades reais e necessidade concreta de que o ano letivo de 2020 termine em 2021. Um meio importante nessa reorganização será a inserção na carga horária de atividades orientadas para serem feitas fora do horário de aula. O que não podemos aceitar é a exclusão de parte dos estudantes do direito à educação. Qualquer decisão só pode ser tomada com ampla participação e partir de um cenário definido.

Daniel Cara: Será preciso repensar e, para isso, teremos de reunir a comunidade educacional para determinar diretrizes gerais. E, em cada caso particular, ouvir cada comunidade escolar. As saídas são a conclusão do ano letivo em 2021, realização de atividades pedagógicas complementares e estruturação de maior carga horária. A educação à distância deve ser um complemento, mas, por ser desigual o acesso, não pode contabilizar no ano letivo.

Priscila Cruz: Carga horária e calendário são temas que dependem de quando vai acabar a quarentena. Antes de pensar isso, precisamos planejar a volta às aulas, pensar uma sequência de ações a fim de que os alunos consigam repor não só carga horária, para cumprir uma formalidade, mas, principalmente, ter garantida a aprendizagem. Não é a mesma coisa que voltar de férias. Esses alunos ficaram isolados em casa com uma série de problemas, como a violência doméstica, ou ainda perderam parentes para a pandemia. Será preciso fazer um nivelamento, para saber em que ponto está cada aluno. Uma estratégia eficiente seria separar os alunos por classes de desempenho e criar uma intervenção distinta para cada nível de aprendizagem.

  1. Qual é a importância do espaço escolar para o aprendizado? A presença física, o convívio social?

Andrea Ramal: O ambiente escolar é importante para o desenvolvimento de competências socioemocionais: a criança aprende a se relacionar com outros, conviver com as diferenças, trabalhar em grupo, expor ideias e argumentos, ter resiliência para encarar problemas. No homeschooling, esses aspectos podem ser trabalhados, porém, no Brasil, esse modelo ainda não existe e não há como implementá-lo de um dia para o outro.

Catarina de Almeida Santos: A escola para grande parte do público do sistema público de educação, além de ser a única esperança, é o espaço mais seguro e muitas vezes possível de estudar. Temos muitos estudantes em situação de rua e uma quantidade maior ainda em domicílios que, além de não ter um espaço físico para estudar, não tem nenhuma tranquilidade e segurança. Por mais precárias que estejam as nossas escolas, ainda são elas e seus profissionais que acolhem, identificam problemas que os estudantes têm fora delas, se arriscam para resolver e fazem com que os estudantes acreditem que podem ser alguém. Nós nunca deveríamos esquecer o adolescente que foi baleado e perguntou para mãe: “Ele não viu que eu estava com roupa de escola?”.

Daniel Cara: A educação se realiza no processo de ensino-aprendizado. Os alunos aprendem com os professores, mas também entre si. Essa é a regra. Pode haver exceções? Sim. Mas são raras. A educação é um processo presencial e é um direito. Durante o isolamento social, só é possível complementar o ensino. A educação acontece melhor quando há vínculo e, agora, isso está prejudicado.

Priscila Cruz: A meu ver, o legado positivo que pode vir desse processo é a valorização das escolas. A gente vem recebendo testemunhos, desabafos de mães, pais, do Brasil inteiro: os alunos estão sentindo falta de interação, inclusive com outros adultos que não os da família deles. São adultos que pensam diferente, que tem outros pontos de vista, outros lugares de fala e que podem oferecer outro tipo de acolhimento.

  1. Qual o impacto da pandemia/quarentena no pensamento sobre ensino a distância no Brasil?

Andrea Ramal: O ensino online ganhará mais adeptos. Muitos professores que ainda não usavam ambientes virtuais de aprendizagem tiveram que mergulhar e aprender novas práticas em poucos dias. Milhares de professores e estudantes estão gostando da experiência e pode ser que a educação à distância se amplie ainda mais, sobretudo no ensino superior. Já na educação básica, valerá como um ensaio, mas ficará claro que ainda estamos longe de fazer ensino online efetivo.

Catarina de Almeida Santos: Muito ruim, pois a pandemia tem sido usada para deturpar a modalidade, difundir concepções simplistas do processo de ensino-aprendizagem, comercialização de soluções ilusórias para os problemas da educação no país, apropriação de dados de professores, estudantes e seus responsáveis, por parte de muitas plataformas que lucrarão durante e depois da pandemia. O que se vende é que a tecnologia resolverá tudo, deixando de ser meio e se tornando fim.

Daniel Cara: Há muito oportunismo. Educação à distância não é eficaz para a educação básica, que vai da creche ao ensino médio. Tampouco para a graduação. É simples a questão: se estávamos indo mal com Educação Presencial, agora está mais difícil. Com isso não estou dizendo que ela não pode ser usada. É um recurso, mas não pode contar para a realização do ano letivo. Há muito desespero, muito oportunismo e pouca preocupação pedagógica.

Priscila Cruz: É claro que o que está acontecendo agora deve dar algum impulso para o ensino remoto. Alguns professores que não planejavam ir para esse caminho acabaram se familiarizando com esse instrumento. O ensino remoto pode ser muito usado na volta às aulas para complementar o aprendizado. Nunca a educação à distância substitui, nem é tão boa quanto a educação presencial.

  1. O papel do professor será revisto? Valorizado? Como ficará a formação do professor?

Andrea Ramal: Com o ensino online, o professor precisa se reinventar. Aulas expositivas podem ser dadas em vídeo, podemos gravar explicações e replicar em escolas e faculdades. Caberá ao professor de cada turma algo muito além disso: desenhar as trilhas de formação de cada estudante, ensinar a refletir, provocar o pensamento crítico, avaliar os resultados. Na nova educação, o professor é um arquiteto cognitivo e um dinamizador da inteligência coletiva.

Catarina de Almeida Santos: Teremos duas faces da mesma moeda. Os responsáveis que estão lidando com os estudantes em casa, estão descobrindo que ser professor não é coisa fácil. Esses tenderão a valorizar. Mas tem aqueles que estão difundindo a ideia de que o professor pode ser substituído pelos aparatos tecnológicos, que levarão aos estudantes os conteúdos produzidos pelos “especialistas”. A formação precisará reafirmar a importância da tecnologia como meio, que é o que ela é.

Daniel Cara: O papel do professor está sendo valorizado pelos familiares que são responsáveis pela educação de suas crianças, adolescentes e jovens. Ao acompanhar os filhos, os pais se reconectaram com a complexidade da educação. Porém, para os empresários da educação à distância e gestores públicos irresponsáveis com a educação, agora é a hora de atacar o magistério por meio da educação à distância e da educação domiciliar. Atacam o magistério e o espaço escolar. Curiosamente, ambos são fundamentais para a realização do direito à educação.

Priscila Cruz: O papel do professor ganhou outra relevância. Ficou muito mais claro para todo mundo como é difícil ser professor. É das profissões mais difíceis e acaba vista pela sociedade de uma forma completamente equivocada, desimportante. Agora, pais e mães estão redimensionando isso. Quanto ao professor, será preciso trabalhar numa formação já para a volta às aulas, tem que estar preparado para um aluno que não é mais o mesmo.

  1. O uso de tecnologias para o ensino vai ser revisto? Entrará mais no radar das políticas públicas?

Andrea Ramal: A experiência de 2020 será um marco decisivo na educação. As políticas públicas certamente começarão a avançar no que se refere ao ensino online, nas mais diversas frentes para que ele se torne acessível a todos. Isso envolve múltiplos aspectos: viabilizar o acesso a computadores e internet, capacitar professores e famílias, desenvolver materiais adequados, ensinar a estudar a distância, formatar mecanismos de controle, monitoramento e avaliação.

Catarina de Almeida Santos: Usar as tecnologias tem a ver com as condições de escolas, professores e estudantes. Logo, é preciso rever no conjunto. Isso implica em equipar as escolas com infraestrutura básica, como saneamento, banheiros, salas minimamente adequadas, bibliotecas, laboratórios de biologia, física, química e informática, brinquedotecas, quadras e, sobretudo, professores bem formados e remunerados. Sem isso, não há tecnologia que resolva.

Daniel Cara: A pandemia pode acelerar o uso da tecnologia na educação. A tecnologia é um meio. E ela deve ser usada. Não como panaceia, mas como instrumento. Contudo, precisa ser distribuída democraticamente. Isso não ocorre hoje.

Priscila Cruz: Não dá para saber se o uso da tecnologia será ampliada. Justamente pela falta de uma coordenação nacional, que deveria acontecer com a liderança do MEC mas inexiste, a gente tem uma dispersão muito grande de soluções e estratégias. O exemplo de São Paulo talvez seja o mais concreto até agora. Por conta da pandemia, a secretaria firmou uma parceria com a TV Cultura e agora tem um espaço para aulas com os conteúdos da rede de SP. Isso vai ficar para depois.

  1. O tempo da quarentena pode transformar o papel dos pais na educação dos filhos?

Andrea Ramal: Uma consequência positiva desta quarentena seria que as famílias passassem a participar mais da vida escolar dos filhos e a acompanhar mais os seus estudos. Quando isso acontece, as crianças se interessam mais pelo aprendizado. Ainda não podemos dizer que isso de fato ocorrerá. Mas certamente todos passarão a valorizar mais o papel dos professores, entenderão melhor muitos dos desafios que eles enfrentam e os verão mais como parceiros.

Catarina de Almeida Santos: Pode, mas não necessariamente para melhor. As pessoas estão romantizando esse processo, e a realidade é outra. Temos pessoas confinadas, em espaços mínimos, com adultos perdendo empregos, reduzindo salários, muitos passando fome e a sociedade tende a ignorar tudo isso. Esse não é um ambiente propício para melhorar relações, e sim para tensionar. As diferentes formas de violência só crescem: abuso sexual, violência doméstica, exploração do trabalho infantil.

Daniel Cara: Para alguns há essa oportunidade: os pais perceberam que precisam participar mais e as escolas perceberam que é imprescindível envolver os pais. Contudo, como a experiência está sendo traumática para muitos, porque enfrentar a pandemia não é fácil e a saúde mental de todas e todos está sendo desafiada, não é possível cravar. Nesse sentido, precisamos reiterar: a educação, como direito, se realiza na escola. E ela é mais eficaz quando envolve vínculo de toda comunidade escolar no processo de ensino-aprendizado. Isso significa que a participação dos familiares é essencial, tanto quanto a de educadores e educandos.

Priscila Cruz: Eu sou um pouco mais pessimista com relação a isso. No começo, os grupos (de WhatsApp) estavam lotados até por conta das dúvidas iniciais. Mas existe um esgotamento natural. Os alunos estão esgotados, os pais estão esgotados, e aquela coisa frenética e animada do começo da quarentena vai dando lugar ao esgotamento, à falta de paciência. Claro que é muito bonito quando os pais descobrem o processo de aprendizagem dos filhos, mas, no geral, isso tende a se diluir com o tempo.

  1. Quais as mudanças mais profundas podem surgir na educação depois da pandemia?

Andrea Ramal: Uma das maiores mudanças será o desenvolvimento do ensino híbrido: parte presencial e parte online. Vamos ressignificar o valor da sala de aula: deveríamos nos encontrar face a face quando este momento fizer sentido, vamos aproveitá-lo melhor. Porém, há riscos: dos mais de 45 milhões de estudantes das escolas públicas, uma parte importante não tem computador nem internet, tampouco tem espaço adequado para estudar em casa. Se essas questões não forem corrigidas, o ensino online pode deixar à margem uma enorme parcela de crianças e jovens, e acirrar as desigualdades.

Catarina de Almeida Santos: Deveríamos ter uma mudança que pensasse a educação como parte de uma vida digna. Isso significa pensar escolas com estruturas para lidar e colaborar com o desenvolvimento de sujeitos, não cabendo educação subfinanciada, escolas que parecem prisões, pensadas por quem não entende dos alunos reais e muito menos de educação. Assim, a melhor mudança seria que a educação fosse pensada por educadores e não por burocratas economistas.

Daniel Cara: As mudanças principais serão o uso adequado e bem dimensionado da tecnologia, a valorização do magistério e a valorização e redescoberta do espaço escolar. Além disso e principalmente, a retomada da perspectiva pedagógica, em detrimento do amadorismo empresarial que tem atrapalhado o debate público educacional. O reino da educação é o da pedagogia, da didática e da psicologia e sociologia da educação. O Brasil precisa fazer a Educação reencontrar seu reino. Essa é minha esperança.

Priscila Cruz: O que já dá para observar é uma demanda maior por planejamento: a gestão está sendo mais desafiada, indo atrás de alunos, tentando solucionar questões de conectividade, e isso pode sim deixar um legado importante, porque a gestão é fundamental.  E aposto também que vamos nos desenvolver com o fator da criatividade, da flexibilidade e de criar soluções em ambientes não ideais.

Fonte: https://oglobo.globo.com/sociedade/coronavirus-servico/covid-19-especialistas-discutem-rumos-da-educacao-brasileira-apos-fim-do-isolamento-social-24364206?fbclid=IwAR3RDUM_YcYtOFdyT9d2UL3JQnV52s1aUwJLVl0z4JIZFJgWJGk5G6ppXqM