Caguei

Maria Homem

 

Um homem forte, lindo e poderoso, um homem imorrível, imbroxável e incomível disse, do alto de sua segurança, “caguei” . Como quem diz “não tô nem aí”. Como quando estamos no quarto ano da escola e você fica nervoso quando a menina chega perto. Aí tira a carta da manga: “você não me atinge”. Você, do baixo da sua insignificância, sua reles mortal, não atinge o deus soberano que plana acima de tudo, acima de todos. Caguei.

Acontece que uns dias depois esse homem foi parar no hospital . E por quê? Justamente porque não estava conseguindo cagar . Por mais que quisesse, por mais que tentasse, por mais que sofresse. Mesmo fazendo direitinho o seu papel “messiânico superior”, a verdade apareceu nua e crua, seu corpo berrava e o país inteiro descobriram: não estou conseguindo cagar. Olha que curioso: “não caguei”. Ou seja, a verdade é que estou cagando de medo. Medo da punição por crimes cometidos, passiva e ativamente –negligências, vacinas, tributos, fundões eleitorais, que boiada você quer para hoje?

Aqui a polissemia da língua portuguesa não muito culta nos ajuda a interpretar como variantes possíveis do medo e da coragem, uma vez que “caguei” é o oposto de “caguei de medo”. Para variar, nosso homem dizia uma coisa e escolha o seu contrário. Essa a metodologia predileta, sua e dos seus. Ao resultado do potente macho, descobrimos o garoto acuado cujo corpo desmentia seu “protesto viril”, para usar uma expressão inspirada de Alfred Adler, discípulo de Freud.

Aqui temos uma aula maravilhosa de psicanálise aplicada, com direito a incursões no estilo coaching, como “o corpo fala” ou “o poder da palavra”. Poderíamos também falar sobre o fio do significante para o qual Lacan nos chamou a atenção, demonstrando que o inconsciente é estruturado como uma linguagem e que real, simbólico e imaginário se entrelaçam. Mas estamos em uma coluna de jornal, só aponto e sigo adiante.

Como infelizmente estamos cansados ​​de sabre, a lista de referências ligadas a cagadas é vasta: cocô, cocozinho, cu, merda, bosta, xixi e demais escatologias. Nosso personagem não cessa de brincar nessa seara. Em defesa dele, lembrar que o universo “anal” é muito importante de ser atravessado, inclusive para a constituição da moralidade. Ele faz uma passagem da lógica oral, de mistura e entrelaçamento com o outro, para uma dinâmica de maior separação, do limite e da lei. Porque?

A criança, quando começa a operar o controle dos esfíncteres, se dá conta de algo muito importante: há o dentro e o fora, o eu e o outro, o agora e depois. Há uma delimitação e o território. Tem que fazer cocô aqui nesse penico (e não na pele / fralda; e muito menos pela casa toda). Sei que é difícil a angústia de separação mas vou te ajudar, vamos “falar tchau pro cocô”. É sério, tem até livrinho para criança nos ensinando um ensiná-las a dar esse grande passo que é poder se separar de seu primeiro produto e grande objeto, o cocô.

Estamos falando também do longo processo de ritualização das “boas maneiras”, a linha da polidez, da higiene, da limpeza, e da introjeção dos afetos do asco e da vergonha. Norbert Elias também nos brindou com uma análise detalhada do processo histórico.

O pequeno ser evolui na conquista do seu próprio contorno e da existência da alteridade, assim como da distinção entre o banheiro e a sala, o privado e o público. E também da gênese do comportamento moral. Afinal, estamos falando de limite, de pactos, de lei. O que pode e o que não pode. Assim se funda a civilização.

Limite, alteridade, civilização, verdade.

O teatro da virilidade vai durar até quando? Está ficando curioso dizer “caguei caguei”, ficar posando de macho viril (ou de mártir) e ao mesmo tempo cagar no pau.

Para fechar com a chave de ouro que por vezes a vida nos oferece: um dia, o filho primogênito do nosso herói estava no meio do tiroteio mental de um debate político e o que conseguiu foi cagar nas calças. Literalmente.

Enfim, a família definitivamente tem problemas com cocô, limite e a lei.

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Fonte: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/maria-homem/2021/07/caguei.shtml