NÃO FOI NADA FÁCIL tomar a decisão. Foram 40 anos trabalhando no Arquivo Nacional. Destes, 17 dedicados ao Centro de Referência das Lutas Políticas no Brasil – Memórias Reveladas, um premiado centro de pesquisas sobre a ditadura militar de 1964. Mas Inês Stampa ficou sem alternativa: decidiu se aposentar.
Stampa passou os últimos meses de 2023 em licença médica e, em fevereiro deste ano, comunicou que encerraria sua carreira. “O desmonte do Memórias Reveladas, iniciado pelos gestores bolsonaristas, mas mantido pela atual administração, literalmente me adoeceu”, ela me disse. Depois de um ano de governo Lula, e sem qualquer perspectiva de mudança para o projeto, ela decidiu que era hora de sair.
O caso da servidora é o espelho de uma longa história de desvalorização do Arquivo Nacional. O órgão foi criado em 1838 como Arquivo Público do Império e seu desmonte atravessa governos, que sucessivamente mudaram sua vinculação a diferentes ministérios.
Em 2005, o órgão instituiu o projeto Memórias Reveladas, focado na documentação dos órgãos de espionagem do governo brasileiro no período entre 1964 e 1985.
Além da documentação, o projeto também digitaliza um imenso volume de arquivos – para se ter ideia da importância deles, dois notórios crimes da Ditadura Militar, os assassinatos de Rubens Paiva e Stuart Jones, foram resolvidos com arquivos do projeto.
Mas, com a aposentadoria de Stampa, o Memórias Reveladas, que já teve 12 funcionários, está sem ninguém. Os últimos dois servidores entraram em licença médica e o projeto parou.
Segundo funcionários do Arquivo Nacional que solicitaram sigilo, o abandono do projeto começou no governo Jair Bolsonaro. Sob Lula, sua importância despencou. O Memórias Reveladas perdeu funcionários, por aposentadoria ou licença médica, e os que ficaram não conseguem atualizar os documentos sobre a ditadura. Há ainda risco de privatização.
Um dos primeiros atos de Sergio Moro: investigar a servidora
No início da gestão Bolsonaro, em 2019, Inez Sampa sofreu o ataque mais agudo a sua atuação. Ela foi alvo de uma das primeiras ações do ex-juiz Sergio Moro, então alçado ao status de superministro da Justiça e Segurança Pública.
Naquele ano, quando o Arquivo Nacional estava submetido à pasta, Moro determinou que a então corregedora-geral do ministério, Paula Araújo Corrêa, investigasse a vida funcional de Inez Stampa.
“Fui objeto do primeiro ofício enviado pela corregedoria do Moro, então todo poderoso ministro”, ela lembra. Moro pedia a demissão da pesquisadora, que também é professora na PUC-Rio, por acumulação de vínculos empregatícios com instituições privadas.
Dois anos depois, em 2021, um caudaloso relatório final do processo administrativo disciplinar aberto pela corregedoria, baseado em “criteriosa análise” de “farto material comprobatório”, recomendou o arquivamento da investigação.
“Já me disseram para emoldurar o memorando que requisitava informações sobre mim. Foi o de número 1 de Moro no ministério. Ser investigada por ele é um bom atestado de honestidade”, ironiza Inez, que também é membro do conselho consultivo do projeto Opening the Archives [Abrindo Arquivos], da Universidade Brown, nos EUA.
Stampa não foi a única perseguida politicamente. Segundo pessoas ligadas ao arquivo, entre 2019 e 2022, além dela, outros dois dos nove funcionários do Memórias Reveladas, sofreram processos administrativos.
Um deles foi transferido por ter postado no site do projeto um artigo sobre a história da aplicação do artigo 142 da Constituição brasileira. Outros três se aposentaram. Como os dois restantes estão de licença médica, o projeto está parado.
13 milhões de páginas sobre a ditadura
A criação do Memórias Reveladas integra o campo da chamada “justiça de transição”, que a ONU define como um “amplo espectro de processos e mecanismos utilizados pela sociedade para que esta chegue a um determinado acordo sobre violações de direitos humanos ocorridas no passado” e garantir “a responsabilização dos culpados, promover a justiça e alcançar a reconciliação”.
Trabalhando no projeto, Stampa visitava os arquivos, que estavam guardados em péssimas condições, para tentar digitalizá-los no Arquivo Nacional e, depois, torná-los públicos na internet.
O projeto guarda 13 milhões de páginas de documentos produzidos pelo extinto Serviço Nacional de Informações, o SNI, pelos Departamentos de Ordem Política e Social, os Dops, e outros órgãos públicos voltados à espionagem política, que funcionaram durante a ditadura militar, e de vários outros órgãos de repressão, como os Conselho de Segurança Nacional, Comissão Geral de Investigações, Estado Maior das Forças Armadas, entre outros.
O Arquivo Nacional e o Memórias Reveladas guardam ainda os documentos do Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais, montado em 1961 por militares e empresários golpistas, com financiamento dos Estados Unidos, para organizar o golpe que derrubou o ex-presidente João Goulart em 1964.
Aeronáutica, Exército e Marinha, em tese, também deveriam ter entregado seus documentos ao Arquivo Nacional, mas dizem que seu acervo foi destruído. Os militares, não mostram a necessária ata da destruição e desrespeitam o decreto presidencial 5.584/2005, que ordenou a transferência dos documentos arquivísticos públicos sobre a ditadura ao Arquivo Nacional.
Mesmo com a operação de sonegação por parte das Forças Armadas, o Brasil possui o maior conjunto de documentos públicos sobre vigilância e repressão política na América do Sul. Estima-se que cerca de outras 10 milhões de páginas sobre o período de 1964 a 1985 ainda estejam espalhadas por variados arquivos em todo o território nacional.
Projeto ajudou a responsabilizar crimes da ditadura
O Memórias Reveladas, que encabeça uma rede com mais de 160 instituições arquivísticas do Brasil e de outros países, também guarda os documentos levantados pela Comissão Nacional da Verdade, a CNV, que entre 2012 e 2014 investigou graves violações aos direitos humanos cometidas por agentes do estado durante a ditadura.
Essa documentação permitiu aos pesquisadores da CNV resolverem a morte sob tortura do deputado federal Rubens Paiva, do PTB, desaparecido e assassinado em 1971 por agentes da repressão política.
Os investigadores desmontaram a versão apresentada por dois generais, um tenente-coronel e dois capitães processados pela morte e desaparecimento de Paiva, a partir da consulta de documentos recolhidos ao arquivo. Paiva teve recentemente o seu caso reaberto pelo Conselho Nacional dos Direitos Humanos.
Outro caso resolvido pelo acesso aos documentos guardados no Arquivo Nacional é o do estudante de engenharia da UFRJ Stuart Angel Jones, militante do Movimento Revolucionário 8 de Outubro, o MR8, assassinado sob tortura por agentes do Centro de Informações da Aeronáutica, na Base Aérea do Galeão, no Rio de Janeiro, em maio de 1971.
O acesso a um documento funcional até hoje portado por militares, a folha de alterações, guardada no Arquivo Nacional, foi utilizado pela CNV para desmontar a versão de um dos militares envolvidos no caso Stuart Angel. Ele alegou estar fora da cidade, em férias, quando Stuart foi morto, mas a sua folha de alteração provou que as férias foram interrompidas e que os órgãos de repressão pagaram a passagem para ele voltar para ao Rio e participar do assassinato.
Tudo parado desde 2023
Neste ano, o governo Lula decidiu suspender todos os atos em memória aos 60 anos do golpe militar, o que provocou muitas críticas mesmo dentro do governo. O Ministério dos Direitos Humanos tinha, inclusive, uma programação completa, com eventos, pedido de desculpas e slogan: “Sem memória não há futuro”. A decisão, no entanto, foi ignorar a data para não “remoer o passado”.
Segundo Inez Sampa, a paralisação do Memórias Reveladas veio ainda antes disso. Desde 2023, os organizadores só conseguiram adicionar “um punhado de documentos” ao acervo. “Mesmo isso, só depois de muita crítica interna e externa.”
“Todos os projetos apresentados pela equipe foram rejeitados ou ficaram sem resposta. Não dá nem para dizer que é resultado da determinação recente de não rememorar o golpe de 1964, porque tudo está parado desde o ano passado”.
Entre os projetos paralisados, estavam a proposta de um seminário internacional que deveria ocorrer entre março e abril de 2024, para marcar os 60 anos do golpe, e a retomada da digitalização dos acervos das Delegacias de Ordem Política e Social, além do Prêmio Memórias Reveladas, que premiava monografias que utilizassem fontes do arquivo sobre o período da ditadura.
Em 18 de abril, a associação dos servidores do Arquivo Nacional confirmou algumas das denúncias de Stampa, afirmando que o legado da instituição “vem sendo solapado desde 2016 por medidas que não só comprometem todos os avanços obtidos, como atentam contra sua missão institucional”.
A associação também afirma que as últimas reestruturações sofridas pelo órgão abriram a possibilidade, inclusive, privatizar funções “que, sob o argumento da economicidade, seriam melhor manejadas pela iniciativa privada”.
“Observa-se, assim, a consolidação de um projeto elaborado durante a presidência de Jair Bolsonaro no governo democrático de Luiz Inácio Lula da Silva”, diz a associação.
Segundo Ana Flávia Magalhães, diretora-geral do Arquivo Nacional , o Memórias Reveladas havia deixado de existir na estrutura do Arquivo Nacional.
Ela diz que, dos 12 servidores que o projeto tinha no início, só sobrou um. “O Memórias Reveladas foi impactado pelas ações que conduziam ao desmonte institucional desse órgão público e que foram intensificadas nos últimos anos”, justifica.
A diretora afirma que o desmonte se expressou na “precarização das relações de trabalho”, que acarretou “desmobilização e adoecimentos, o que, por sua vez, levou servidores a se ausentarem, justificados por licenças médicas, por exemplo”.
Magalhães afirmou que, ao assumir o cargo em março de 2023, o órgão conduziu uma força tarefa para analisar o cenário e recompor a equipe. Ela garante que o momento, agora, é “bem mais promissor”, com a chegada da historiadora Gabrielle Abreu para a Diretoria de Processamento Técnico, Preservação e Acesso ao Acervo.
Para a associação de servidores, o Arquivo Nacional está apartado das atividades de digitalização. “Fazer política pública de verdade não é simplesmente ocupar espaços ou promover ações de publicidade”, critica Stampa.