“Ninguém é ingênuo diante do racismo”, diz Nilma Lino Gomes, primeira reitora negra de uma universidade federal

Professora da UFMG fez palestra em Porto Alegre na segunda-feira e destacou o papel das instituições de ensino na superação do racismo

Para marcar o início do semestre letivo, a Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) promoveu, na manhã de segunda-feira (25), uma aula magna apresentada por Nilma Lino Gomes, professora titular da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

Com um currículo extenso na luta pela igualdade racial, Nilma tornou-se, em 2013, ao comandar a Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira, a primeira reitora negra de uma universidade federal no Brasil. Também foi ministra da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, em 2015, e das Mulheres, da Igualdade Racial, da Juventude e dos Direitos Humanos do governo de Dilma Rousseff, entre 2015 e 2016.  Defensora da mudança de atitude e da ampla discussão sobre diversidade, Nilma recebeu a reportagem antes da apresentação, intitulada “O papel da universidade na superação do racismo na sociedade”, na Reitoria da UFRGS.

Desde 2012, quando o sistema de cotas foi instituído (na UFRGS, existe desde 2007, por decisão da própria universidade), no que evoluímos? 

O que mudou foi o acesso desses jovens à universidade nas mais diferentes áreas do conhecimento. Mudou que eles têm ajudado a repensar a própria instituição, o currículo, as bibliografias que nós usamos. Têm ajudado a indagar o quão euro-centrado é o nosso currículo, e o quanto a gente tem de se abrir para outros conhecimentos que estão fora desse eixo Europa-ocidental, tão valorizado no mundo. Isso não significa desqualificar um conhecimento em relação ao outro, mas entender que a gente tem uma profusão de conhecimentos que forma a ciência. Nós podemos ajudar a colocar na sociedade sujeitos que não sejam intolerantes, racistas lgbtfóbicos, machistas. Esse é o papel da universidade também: formar subjetividades democráticas. As cotas têm ajudado nisso.

Nós podemos ajudar a colocar na sociedade sujeitos que não sejam intolerantes, racistas lgbtfóbicos, machistas. Esse é o papel da universidade também: formar subjetividades democráticas. As cotas têm ajudado nisso.

NILMA LINO GOMESProfessora da UFMG

 

E o que ainda é um desafio dentro desse sistema? 

O desafio é a permanência desses sujeitos dentro das universidades, que vai além da assistência estudantil, que tem de ser mudada. Isso porque chegam sujeitos de escolas públicas, estudantes pobres. Vamos olhar para os nossos currículos e pensar: eles dão conta dessa riqueza de realidades que estão dentro da universidade hoje? Outro desafio é como a gestão acadêmica gerencia a diversidade dentro das universidades hoje. Também é um desafio não deixar que, dentro delas, proliferem práticas racistas e xenófobas.

 

Qual é a sua visão sobre o nosso momento político atual? 

Estamos vivendo um momento de muitos retrocessos do ponto de vista político e cultural. Temos a Emeda Constitucional 95/2015, que congelou por 20 anos os recursos para saúde, educação e assistência. Claro que isso vai impactar a educação como um todo, desde a base até a universidade. Temos, também, uma criminalização dos docentes, acusação de que eles só sabem fazer ideologia, não ensinam os estudantes a pensarem de uma forma mais plural. Eu acho que isso é uma injustiça com o trabalho dos professores, é um discurso conservador que não ajuda em nada a democracia e não ajuda em nada a fazer o Brasil avançar. Então, eu diria que a gente está em um momento de tensão. A universidade não pode retroceder naquilo em que já avançou em termos de políticas de ações afirmativas, por mais pressionada que ela possa ser, seja pela sociedade seja por algum tipo de governo.

Os negros estão ingressando nas universidades, estão se formando, mas quando saem ainda encontram um mercado de trabalho muito desigual. Por quê? 

 

“A universidade não pode retroceder naquilo em que já avançou em termos de políticas de ações afirmativas, por mais pressionada que ela possa ser, seja pela sociedade seja por algum tipo de governo.

NILMA LINO GOMESProfessora da UFMG

 

A desigualdade racial, e também de gênero, no mercado de trabalho é uma comprovação de que o racismo age estruturalmente na nossa sociedade. Você consegue fazer mais políticas no setor público do que no privado, onde tem a questão econômica, do lucro, a ideia de “esse espaço é meu, eu que decido”. No público, o estado brasileiro pode e deve intervir. Temos um grande desafio de fazer ações afirmativas no mercado de trabalho, ele é um setor muito resistente para qualquer política de equidade e igualdade. Temos movimentos dentro do mercado que são importantes, mas que deveriam crescer. É importante o entendimento de que não é só uma competência que determina para onde as pessoas vão. Se o empregador tem princípios e valores racistas, ele impede uma pessoa de estar naquele lugar, de estar em determinado emprego, não por uma questão de currículo ou competência, mas porque ele olha para a cor da pele daquela pessoa. É uma forma de o racismo operar institucionalmente.

 

Por que as pessoas negam ser racistas se, no fundo, elas são? 

Antropólogos chamam a atenção para o fato de que o Brasil vive o racismo ambíguo, e essa ambiguidade se afirma por meio da negação. Então, a sociedade brasileira convive com o imaginário de uma narrativa de democracia racial que foi construída justamente para escamotear o quão estrutural é o racismo na nossa sociedade. Isso vem sendo construído durante séculos e está arraigado nas mentalidades. Nem todo mundo que fala que não é racista ou que acredita que não haja racismo no Brasil de fato crê nisso. Mas se aproveita desse mito da democracia racial e dessa ambiguidade para se expressar e fazer de conta que está sendo ingênuo nessa situação. Eu diria que ninguém é ingênuo diante do racismo.

 

E onde tu sentes preconceito hoje? 

Como sou mulher negra, pesquisadora, que trabalho com essa temática, sinto racismo não só em relação a minha pessoa, mas quando circulo na cidade e nos lugares mais pobres, debaixo dos viadutos, nas ruas, e olho as pessoas e elas pessoas são negras. Sinto racismo quando entro num determinado espaço, aeroporto, locais acadêmicos, de poderes de decisão, e eu sou a única mulher negra. O racismo não está dito ali, mas está naturalizado. Assim, eu sinto o racismo, e não tem como isso não me tocar pessoalmente e profissionalmente. E pessoalmente, só se vai superar o racismo quando esse sentimento não for só meu, de mulher negra, mas quando ele for de todo cidadão brasileiro, independentemente do seu pertencimento étnico e racial.

 

Fonte: https://gauchazh.clicrbs.com.br/educacao-e-emprego/noticia/2019/03/ninguem-e-ingenuo-diante-do-racismo-diz-nilma-lino-gomes-primeira-reitora-negra-de-uma-universidade-federal-cjtpqtzca00ai01llcolif3ro.html?fbclid=IwAR3AaZi5QUIqTs1cjSIHRs8_BODsJ1yWEZ5vxpFfes8eEc1_Qh5uVJXCviU