Urgente é a vida

Andréa Pachá

O Globo 04/04/2020

​Qualquer pauta, que não a afirmação da vida diante da pandemia, parece fútil. Acordar e dormir na iminência de adoecer, contagiar os outros, garantir comida aos famintos, sepultar os mortos, tem sido angústias inevitáveis desde o dia em que constatamos que somos todos vulneráveis. Já há velórios sem despedidas, idosos experimentando a profunda solidão na curva final da vida, afastamento dos afetos e dos amores. Um luto no presente, sem prazo para acabar. Uma tristeza coletiva, que deve ser compreendida e respeitada, para que o sofrimento não se transforme em depressão, e para que possamos chorar as perdas, para conseguir em um novo momento, de um novo mundo, seguir adiante.

​Ocupados com reuniões, compromissos e viagens inadiáveis e urgentes, sem tempo para nada ou para ninguém, nos dando ao luxo de deixar as visitas aos amigos e o convívio familiar para uma próxima semana, fomos atravessados pelo imponderável, e chegamos a um momento de isolamento e apreensão inéditos, tanto para os mais jovens, quanto para os mais idosos. A velocidade da vida, até então, impediu qualquer reflexão ou prevenção capazes de barrar o avanço do Covid-19 pelo mundo afora.

​Aprisionados em um presente silencioso, aguardando a ação virulenta de um ser microscópico que nos ameaça, amedronta e expõe as vísceras de um sistema desigual e perverso, foi preciso uma hecatombe para que despertássemos do pesadelo que os sonhos do consumo e da concentração de renda provocaram.

​Nunca fomos imortais, mas nos comportávamos como se não houvesse amanhã. Até que não houve mesmo amanhã. Aprendemos, no susto, que tudo pode parar. A onipotência da nossa geração nos fez acreditar que não há desafio que não possa ser vencido, nem limites para os desejos, e que o sucesso e a felicidade são obrigatórios. Refratários à dor, com “coaching” para todas as contrariedades, de um minuto para outro, fomos obrigados a lidar com a impotência e o desamparo.

​Sem um vírus invisível, continuaríamos invisibilizando os miseráveis, os idosos, os sem teto, a população carcerária e os sem saúde. Eles sempre existiram. Agora não há como ignorá-los. Integramos, todos, um mesmo sistema. Da saúde de todos, depende a nossa saúde.

​A economia mundial será outra depois dessa experiência. A recessão é inevitável. Serão tempos difíceis. O custo do isolamento social é a redução das mortes e do contágio. Não há lucro ou projeto econômico que possa se sobrepor à vida nessas condições. Ninguém é obrigado a decidir morrer de fome ou da doença. Todas as lideranças já compreenderam o recado: sem cooperação, interdependência e solidariedade não há saída.

​Aqui, lamentavelmente não contamos com a sensatez do errático governante que, no lugar de se ocupar da execução de políticas de distribuição de renda, e divulgar campanhas preventivas, que impeçam o colapso do sistema de saúde, despreza a ciência e potencializa conflitos, dissemina notícias falsas, e arrasta o país para a morte. Com seu desvario, desrespeita a dor de toda a humanidade. Um contraponto cruel à imagem do Papa Francisco, ocupando o vazio da Praça de São Pedro, com o peso do mundo na alma.

​Ignoremos a ignorância e a pequenez transitória e passageira. A vida sempre encontra caminhos para se fortalecer. Em meio a tanto sofrimento, tem sido comovente acompanhar ações de cooperação entre países e solidariedade entre pessoas. São movimentos quase invisíveis, aparentemente irrelevantes, como o trabalho incansável dos ativistas Raull Santiago e Buba Aguiar, nas comunidades da Maré e Acari, acolhendo e cuidando dos moradores e vizinhos. Ações imperceptíveis que, assim como um vírus, contaminam e contagiam a todos os que compreendem que a vida só é possível, se for para todos.

​Isso vai passar. Ainda é cedo para falar do futuro. Com o trabalho essencial da ciência, da saúde e da educação, com as informações preciosas da imprensa livre, a travessia pela crise será menos dolorosa.

​O que nos cabe, nesse momento, é cuidarmos uns dos outros. A única urgência é a vida.

Fonte: https://oglobo.globo.com/opiniao/urgente-a-vida-24350584