Brilho da ciência e da cultura vai nos tirar da escuridão. Por Gilberto Gil

Desde pequeno, me interesso por ciência e tecnologia. Em Ituaçu, no interior da Bahia, onde passei a infância, acompanhava por revistas ilustradas e pelo rádio as revoluções tecnológicas do período, ao mesmo tempo que via meu pai médico e minha mãe professora primária se dedicarem a seus ofícios de cuidar e ensinar.

Não canalizei esse deslumbramento pela ciência a uma carreira profissional, como tantas crianças que, apaixonadas por robôs e viagens espaciais, se formam engenheiras, físicas ou matemáticas.

Acabei construindo uma trajetória na música, mas nunca deixei de me encantar com a capacidade humana de esquadrinhar os mistérios do universo e produzir discursos, imagens, teoremas e técnicas para compreender as dimensões da vida e do cosmos, do qual somos uma ínfima parte, se bem que imensamente curiosa e questionadora.

O ser humano é um ser de perguntas, mas também se empenha em criar sistemas que procuram respondê-las. Essa é a essência da ciência, mas também da cultura de um ponto de vista mais amplo.

Ciência e arte, embora distintas, se entrelaçam, penetram nessas frestas que o universo e a condição humana nos apresentam sob a forma de mistérios. São linguagens e sistemas que, movidos pelo fascínio do novo e pela ebulição do conhecimento, perseguem a busca por novos modos de imaginar o mundo, uma busca que se reveste de enorme sofisticação e especificidade na prática científica, mas que surge da matéria ordinária de que é feito nosso cotidiano.

A física quântica foi uma das descobertas que me atraíram enquanto observador dos fazeres e saberes científicos. Esse ramo da ciência, que inspirou meu disco “Quanta” (1997), é a busca de mais de um século por uma linguagem que dê conta do absurdo do mundo nas minúsculas escalas subatômicas, sem a qual é impossível entender a enormidade do cosmos.
As equações e a famosa metáfora do gato de Schrödinger, o problema da incerteza elaborado por Heisenberg e a longa disputa que se iniciou entre os gigantes Albert Einstein e Niels Bohr —debate que passa por modelos matemáticos divergentes até elaborações teológicas sobre os princípios de ordenação do universo— colocaram em jogo o equilíbrio entre a precisão das leis físicas clássicas e o abismo criativo da incerteza moderna.

Para mim, a obstinação dessas mentes científicas em pensar o impensável, teorizar sobre a vida das ondas-partículas em escalas abismalmente distintas daquelas dos objetos triviais, toca em desafios que são também a matéria-prima da arte, da cultura, da filosofia ocidental e oriental: inventar linguagens novas com base naquelas que já circulam, criar mundos distintos, mas que convivem com nossa vida corriqueira, imaginar outros mundos possíveis e novas maneiras de nomear esses mundos, transformar a vida dos sujeitos a partir de novas formas de dizer o universo.

Do mesmo modo, a ciência é parte da cultura, se por cultura entendemos não um conjunto de obras canonizadas segundo uma régua histórica de desigualdade, mas como uma constelação dinâmica na qual se inscrevem os atos criativos de um povo. E a tecnologia é o encontro da ciência com o terreno das práticas culturais as mais diversas, propiciando a transformação de como organizamos nossa rotina individual e nossa vida coletiva.

A computação quântica, atualmente em gestação, é filha rebelde dos sonhos impronunciáveis de Heisenberg sobre a lógica fundamental que constitui a matéria e uma enorme promessa de reviravolta de todos os aspectos da nossa vida coletiva —em boas ou más direções.

Essa busca por linguagens para expressar o novo ou de códigos para enformar o conhecido e o desconhecido são as questões de todo artista. Como músico, integrei uma geração e uma coletividade que se propôs pensar uma nova linguagem para a cultura brasileira que não fosse uma ruptura com a cultura popular ou erudita, mas que também abraçasse seletivamente novas influências e confluências do período.

A tropicália e todos os seus ramos e transposições posteriores são um capítulo primordial do entrechoque das culturas no Brasil. Foi a partir do encontro de ritmos africanos, instrumentos ocidentais, harmonias que circulavam nas Américas, instrumentos indígenas e estrangeiros, de saberes e sensibilidades que pudemos criar linguagens que expressassem um presente múltiplo e os futuros possíveis.

A ciência para o futuro exige esse tipo de encontro e de energia disruptiva. A história da ciência no Brasil ultrapassa as fronteiras das disciplinas e das instituições —ela se origina na etnociência dos povos indígenas, passa pelas observações astronômicas dos jesuítas, se difunde entre médicos e boticários, sangradores e curandeiros do Rio de Janeiro machadiano.

A ciência, à imagem do Brasil, é uma força em movimento que invade os mais diferentes corpos sociais e culturais, misturando raças, culturas e religiões. Sua institucionalização no século 20 foi certamente desigual, cerceada, com idas e vindas, mas ainda assim rebelde e brilhante.

De Oswaldo Cruz ao SUS, de Nise da Silveira ao ingresso de Davi Kopenawa na Academia Brasileira de Ciências, de César Lattes ao sequenciamento do genoma do coronavírus, a ciência se desenvolveu no território nacional, prosperou em centros de excelência e avançou a despeito de ataques e de sua desigualdade regional.

Ao tomar posse como ministro da Cultura, eu disse que “o Estado nunca esteve à altura do fazer de nosso povo, nos mais variados ramos da grande árvore da criação simbólica brasileira” —e isso também vale para a ciência.
O Estado, porém, mesmo se distante dessa mina preciosa de criatividade, sempre atuou como o indutor fundamental desse processo, por meio de políticas de ensino superior e de ciência e tecnologia, mas também em instituições como o SUS e o ICMBio.

Imaginar o futuro para o Brasil, e a partir do Brasil, é promover a urdidura entre as ciências mais avançadas e os saberes populares, entre a sensibilidade dos povos das florestas e a dos quilombos, entre os métodos dos cientistas sociais e a sabedoria das periferias, entre a ciência biomédica e o conhecimento que brota dos encontros no asfalto, na terra e na mata.
Somos um povo fundamentalmente sincrético, que sabe inventar o novo com base em tradições e signos a princípio contraditórios ou incongruentes, mas que em seu entrechoque permitem que surjam contribuições ao progresso mundial.

Nossas tradições indígenas, ribeirinhas, quilombolas e dos demais povos da floresta demonstram na prática a potência dos saberes populares em premeditar e complementar, no tecido de suas vidas, as descobertas das ciências que nos últimos anos mostraram a calamidade da emergência climática. No ativismo de indígenas e jovens periféricos hoje, a grande inteligência do povo brasileiro se encontra com a ciência mais avançada e com a urgente política climática global.

A cultura brasileira, cuja diversidade tem reconhecimento internacional, é o grande patrimônio do país, bem como nossos ecossistemas, que guardam em si a maior biodiversidade do mundo. E, no caso da Amazônia, é fundamental para qualquer possibilidade de imaginação de um futuro ao planeta.

Ao longo da pandemia, a adesão dos brasileiros à vacina foi um ato de resistência contra o negacionismo, uma prova de que os valores da ciência estão bem assimilados pela sociedade e sobrevivem aos ataques.

Se lembrarmos da auto-organização de comunidades periféricas brasileiras no começo da pandemia, que permitiu a milhares de famílias manter algum grau de isolamento, como prega a melhor ciência médica; se lembrarmos como, assim que as vacinas estavam disponíveis, o SUS foi capaz de rapidamente imunizar a população, podemos constatar que a ciência não precisa se mostrar alheia às vivências das pessoas, mesmo entre quem todo dia enfrenta as vulnerabilidades mais profundas.

Se, por um lado, com a pandemia a ciência se viu no centro do debate nacional, por outro, ela ultrapassa em muito a conjuntura: a ciência alimenta nossa sociedade das mais diferentes formas, é a força motriz de nosso futuro como humanidade.

A política científica tem que ser reconstruída e expandida. Ela deve ser maior que um ou dois ministérios, deve se organizar como um sistema cujos polos estejam mais interligados e com financiamento à altura do desafio de fazer avançar a ciência nacional.

É fundamental que pesquisadores disponham de recursos para tocar seus projetos, elaborar novas perguntas, engajar jovens cientistas em processo de formação, contratar pesquisadores que sejam valorizados com bolsas que lhes permitam total dedicação a seus projetos.

Uma política científica, assim como uma política cultural que reconheça o território e suas gentes, tem de apostar na capacidade de fazer florescer a inteligência local e na potencialização de redes transnacionais.

Quando ministro, tive a honra e o desafio de participar do processo de construção de uma rede de pontos de cultura que foram espalhados pelo país. Imagino que algo parecido poderia ser também aplicado à ciência e à tecnologia, com a disseminação, pelo território físico e pelos espaços virtuais, de pontos de dinamização do conhecimento local, de encontros improváveis, e de liberação das energias sociais hoje em grande medida represadas.

O momento de hiperbólica oclusão política que vivemos é um capítulo da longa história de tensão entre as forças retrógradas que negam nosso potencial como nação e as forças criativas que teimam em continuar existindo.

Precisamos superar essa tensão e pôr a cultura e a ciência no coração de um projeto de país. E isso não é apenas uma missão de políticas públicas: é um dos vetores urgentes de reinvenção do Brasil frente aos desafios climáticos, econômicos, sociais e humanos.

A responsabilidade pública pelo fomento da ciência é parte do projeto civilizatório não só para garantir um futuro ao Brasil, mas à humanidade, já que sem o Brasil é quase impossível que haja o humano. Promover e disseminar a ciência é um projeto cultural que aposta no melhor do humano.
No texto-manifesto do disco “Realce” (1979), eu disse que a ciência a serviço do país e de sua gente é “uma maneira de dizer a luz geral. Denominar o brilho anônimo, como um salário-mínimo de cintilância a que todos tivessem direito”.

Esse brilho anônimo é mais intenso que os raios de Marie Curie e a luz funesta de todas as bombas atômicas: ele é o brilho da ciência e da cultura que nos ajuda a sair da noite escura.

Gilberto Gil Cantor, compositor e ex-ministro da Cultura (2003-2008, governo Lula)

Artigo publicado originalmente na FSP

Fonte: https://www.aldeianago.com.br/nossos-baianos/31046-2022-06-28-11-51-23