Um dos cientistas por trás da repatriação do fóssil ‘Ubirajara’, paleontólogo da UFPI agora quer reaver o ‘Irritator’
Paleontólogo e professor da Universidade Federal do Piauí (UFPI), Juan Carlos Cisneros é um dos nomes por trás de uma campanha internacional pela repatriação do fóssil do dinossauro Irritator challengeri, mantido desde 1991 no Museu de História Natural de Stuttgart, Alemanha.
A ação segue os passos de articulação semelhante empreendida por Cisneros e outros cientistas brasileiros em 2020 e que resultou na devolução ao Brasil de outro fóssil de dinossauro, o Ubirajara jubatus – segundo ele, “um divisor de águas” na paleontologia brasileira.
A iniciativa se insere em um debate internacional sobre a manutenção, em museus mundo afora, de artefatos de valor histórico levados de outros países em circunstâncias incertas ou moralmente/eticamente questionáveis. No Brasil, o assunto voltou a ganhar tração com a recente devolução, pela Dinamarca, de um manto tupinambá confeccionado no século 17.
“Uma parte muito importante do nosso patrimônio paleontológico, talvez a mais interessante e valiosa, não está no Brasil – o que é injusto”, afirma Cisneros em entrevista à DW.
Ele atribui o fenômeno ao contrabando ilegal dessas peças, mas também a uma mentalidade “de Indiana Jones” que predominava no século 20, “do desbravador que traz as coisas como se fossem troféus” que beneficiam outros países “economicamente, culturalmente e educacionalmente”.
“Usar recursos de um país pobre em benefício de um país rico é colonialismo. A gente sabe que essa palavra dói, incomoda. E tem que incomodar. Porque só incomodando a gente é escutado nesse caso.”
Cisneros é um dos autores de estudo publicado no ano passado que aponta a Alemanha como destino de boa parte dos fósseis retirados da Chapada do Araripe, uma região do Nordeste rica em fósseis, baseado em pesquisas publicadas nas últimas três décadas.
DW: Há um movimento global pelo retorno de bens de valor científico e patrimonial aos seus países de origem. Por que isso importa?
Juan Carlos Cisneros: Uma parte muito importante do nosso patrimônio paleontológico, talvez a mais interessante e valiosa, não está no Brasil – o que é injusto. Tentamos recuperar objetos que, do ponto de vista histórico e científico, têm valor incalculável – objetos vendidos de maneira ilegal, porque a venda de fósseis no Brasil é ilegal. E ficou com eles quem tinha dinheiro.
A maioria dos fósseis com estudos publicados nos últimos 30 anos e que saíram da Chapada do Araripe, que é a região mais rica em fósseis do Brasil, está hoje em museus na Alemanha – o Irritator é um deles. Isso é o que a gente sabe, porque está publicado. A gente não sabe quantos fósseis estão em armários de museus. Nem todas as bases de dados dessas coleções são públicas, e nem todas as que são públicas mencionam tudo o que está lá. A gente também não sabe o que há em coleções privadas.
Que diferença isso faz na vida de pessoas comuns?
As pessoas no Ceará, Piauí, não sabem que nesta região teve dinossauro, porque nunca viram um num museu. E nunca viram num museu porque eles estão em outros países. Não se pode apreciar e valorizar o que não se conhece. Para poder conhecer, saber que algo existe e apreciar, valorizar, amar e defender, tem que poder ter contato.
As regiões de onde foram extraídos esses fósseis têm índices de desenvolvimento humano muito baixos. Estamos falando do sertão nordestino. Justamente as pessoas que precisam de mais autoestima e de mais opções econômicas que poderiam vir através do turismo e dos museus são as mais prejudicadas pelo contrabando de fósseis. Um fóssil bonito num museu movimenta a economia local. Mas qual economia está sendo movimentada? A de cidades alemãs, dos Estados Unidos, do Japão, que estão se beneficiando economicamente, culturalmente e educacionalmente com recursos brasileiros.
Esse seria o aspecto colonialista da paleontologia que o senhor critica?
Exatamente. Isso – usar recursos de um país pobre em benefício de um país rico – é colonialismo. A gente sabe que essa palavra dói, incomoda. E tem que incomodar. Porque só incomodando a gente é escutado nesse caso. Pedimos por décadas que parem de comprar, fazer pesquisa com fósseis contrabandeados. Começamos a ser escutados quando começamos a usar o termo colonialismo.
Imagino que haja pessoas da própria região participando desse contrabando que o senhor aponta, não?
Quem está do outro lado do oceano defendendo essas práticas muitas vezes diz que estamos privando as pessoas pobres de um benefício econômico, mas elas na verdade estão sendo exploradas. Quem se beneficia é o atravessador que leva isso daqui para o outro lado do oceano e o museu que compra. No caso do Ubirajara, acho que foram uns 10 mil euros [pagos pelo museu]. Com esse dinheiro os pesquisadores mostram produtividade e o museu depois consegue verbas federais muito acima desse valor. O trabalhador que está com a picareta quebrando pedras no sertão está vendendo fósseis pelo preço de uma cachaça. Pior: cria-se uma dependência [econômica] de algo que é ilícito.
Não faltam políticas públicas um pouco mais incisivas para coibir esse tipo de situação?
A Polícia Federal tem feito apreensões numerosas nos últimos anos – só no Ceará foram mais de 10 mil fósseis na última década –, há fiscalização nos aeroportos e um escrutínio maior do movimento desses objetos. Isso sem falar no porto de Santos, porque muitos saem disfarçados como algum tipo de minério. Quem quer contrabandear hoje está se arriscando bem mais do que há 10, 15 anos.
Esses fósseis muitas vezes são encontrados em mineradoras de calcário. Deveria haver fiscalização da Agência Nacional de Mineração, mas eles só têm três paleontólogos para o Brasil inteiro. Isso não é suficiente nem para o Ceará. É preciso investir mais.
Quais são as evidências de que esses fósseis de que o senhor fala foram contrabandeados?
Desde 1942 nossos fósseis foram declarados propriedade da União, [portanto] não podem ser comprados e vendidos por particulares. Se alguém comprou esse fóssil, é uma violação às nossas leis. O próprio artigo do Irritator [publicado em 1996]diz que o fóssil foi comprado e que os vendedores danificaram o material.
Se é da União, tem que pedir permissão à União para tirar do Brasil. E duvido que eles [museus] tenham um documento comprovando que saiu legalmente. Museus que se importam com as leis de outros países deveriam ter isso – um dos traços do colonialismo é desprezar leis locais.
Desde 1990 também temos uma lei que proíbe a exportação permanente de fósseis que representem espécies novas para a ciência. Se estiver catalogado em um museu estrangeiro e representar uma espécie nova para a ciência, isso contraria as nossas leis.
Imagino que as coisas tenham mudado de uns anos para cá, mas ainda vemos peças expostas em museus sem informações sobre como elas foram parar lá.
Predominava a filosofia do Indiana Jones. A mentalidade de muitas pessoas ao longo do século 20 foi essa, do desbravador que traz as coisas como se fossem troféus. É uma caricatura, mas descreve a problemática que nossos campos de trabalho – a arqueologia, mas também a paleontologia – enfrentam. Hoje em dia pouquíssimos museus comprariam um fóssil sem ter algum documento que mostre a procedência legal disso.
Sim, mas o que fazer com bens de origem duvidosa que já estão nos museus?
Pergunta ao museu britânico o que eles querem fazer com as imagens do [templo grego de] Parthenon, e depois pergunta aos gregos. As respostas vão ser bem diferentes.
Eu gostaria de ver o patrimônio brasileiro no Brasil – especialmente quando foi obtido de maneira ilegal. Não precisa mandar tudo, mas quem tem que decidir isso não são eles, somos nós. Se você perguntar ao Egito se eles querem todas as múmias de volta, acho que a resposta será não, porque nem tudo tem o mesmo valor histórico e científico para eles. A gente não quer todos os fósseis brasileiros, queremos alguns que podem ajudar a avançar nossa ciência e que vão ser de grande importância cultural para os habitantes da região onde eles foram encontrados.
Já ouvi paleontólogo falar que esses objetos não pertencem ao Brasil porque o Brasil não existia naquela época. Será que a Petrobras também pensa que o petróleo não é brasileiro porque o país não existia na época em que ele foi gerado?
Os padrões éticos da ciência em relação a esses artefatos históricos estão mudando?
Acho que estamos obrigando os pesquisadores, algumas revistas e museus, a mudarem. O caso do Ubirajara foi um divisor de águas na paleontologia. Fez as pessoas pensarem sobre qual é a maneira correta de trabalhar com um material. As revistas científicas estão revendo suas políticas sobre artigos baseados em fósseis de outros países – algumas estão pedindo documentação sobre a origem legal dos fósseis, e têm perguntado sobre colaboradores locais. Isso é novo na paleontologia, mas já estava sendo feito em outras ciências, onde se fala em “paraquedismo científico”: chegar, coletar dados, usar pesquisadores locais apenas para apoio logístico.
Mas o Ubirajara é eco de um caso anterior, muito emblemático, na Mongólia, que dez anos atrás conseguiu reaver um dinossauro que estava ilegalmente nos Estados Unidos. Minha inspiração foi a paleontóloga mongol Bolortsetseg Minjin.
Essa discussão sobre colonialismo científico acontece em outras áreas do conhecimento há décadas. Na paleontologia, é um tabu que estamos conseguindo quebrar. Deveria ter palavras mais suaves para falar disso, mas realmente se apropriar de recursos de países em desenvolvimento não é correto e isso tem que ser falado.
De onde saiu essa ideia de ir atrás da origem dos fósseis?
Desde que entrei na paleontologia, no finalzinho dos anos 1990, escuto falar em tráfico de fósseis que estavam sendo enviados para o exterior. Chega a ser um fardo e um tabu, porque quando a gente vai a um congresso internacional e encontra as pessoas que trabalham nessas instituições que a gente sabe que estão comprando fósseis ilegais, a gente se sente coagido: “Se eu falar, vou ser ridicularizado ou, pior, vão me jogar fora desse campo.” O revisor de um artigo meu pode ser um paleontólogo em um desses museus.
Quando denunciamos, estamos colocando nossas carreiras em risco. Mas com o Ubirajara foi um risco calculado. E hoje temos redes sociais. Também traçamos uma estratégia para produzir artigos científicos, porque os cientistas que ignoram as redes sociais não podem ignorar um artigo científico.
No Brasil nos acusam de perturbar a cooperação com pesquisadores estrangeiros. Eu não estou reclamando de cooperar com pesquisadores estrangeiros, mas a cooperação tem que ser ética e equilibrada, com benefício mútuo. Queremos que respeitem nossas leis e normas – como eles exigem de nós quando vamos para lá.