Slam: poesia falada em vozes periféricas

No Dia Nacional da Poesia, uma reportagem sobre a oralidade poética dos slams

Por Tassia Menezes

 

O que é a poesia? Há quem diga que seriam apenas versos escritos em uma folha de papel. Para outros, tudo que pode criar significado não literal. Há quem enxergue a poesia a partir de regras: formas específicas de rimar, números predefinidos de linhas para contar… Outros a veem como algo que surge a partir da emoção do poeta.

Historicamente, a poesia chega antes da escrita: transmitida inicialmente a partir de um formato oral no período antes de Cristo. Essa foi uma das maneiras encontradas pelos ancestrais de todo o mundo para transmitir histórias, mitos e registros das mais diversas culturas de um povo, tanto em territórios africanos e indianos quanto europeus. Anos após a tecnologia da escrita transformar a ideia do que é esse gênero, um movimento recente vem fortalecendo cada vez mais a poesia falada: o slam. 

Neste 31/10, quando se comemora o Dia Nacional da Poesia, o Conexão UFRJ traz uma reportagem sobre a forma como o poetry slam tem ganhado dimensões globais,  tornando a poesia novamente mais acessível. 

O que é o slam?

1984, Chicago, Estados UnidosUm trabalhador da construção civil e poeta do subúrbio de uma das maiores cidade do país do norte da América, Marc Kelly Smith, começa a se reunir com amigos e outros poetas no formato de microfone aberto. Esse foi o marco inicial para o surgimento do slam em sua essência. Definido como uma batalha de poesia falada, ele funciona a partir de uma lógica de competição e traz consigo também os conceitos de performance, interatividade e comunidade.

Funciona assim: é definido um número determinado de poetas que vão apresentar, um de cada vez, uma poesia autoral. Ao longo dos três minutos reservados individualmente, as performances vocal e corporal do slammer são muito importantes e não podem ultrapassar os três minutos. Após cada apresentação, os jurados – pessoas voluntárias da plateia – apontam notas de 0 a 10.

Depois de todos terem performado naquela rodada, são informados os vencedores da chave, seguindo-se assim com a competição até haver uma única pessoa vencedora. Essas regras são basicamente as mesmas desde os anos 80, e isso ajuda a explicar o crescente sucesso do movimento: a disputa alcança um lugar não de briga ou superioridade, mas sim de crescimento mútuo. Dos Estados Unidos para o mundo, o movimento ganhou dimensões gigantescas, com campeonatos mundiais que acontecem há pelo menos 15 anos.

Apesar da proibição em utilizar instrumentos ou outras sonoridades, musicais ou não, durante as apresentações, a aproximação do slam com a cultura hip-hop e com o rap também foi um diferencial e um dos motivos de sua popularidade. Isso porque a forma de lidar com as mazelas de uma população periférica fez com que o slam alcançasse um espaço de disputa de narrativas, inclusive no Brasil, onde tem participação popular e urbana muito grande.

“A oralidade é periférica” 

Para Miriane Peregrino, doutora em Ciência da Literatura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e pesquisadora do movimento slam em países de língua portuguesa, a principal característica das diferentes manifestações de slam nos lugares onde realizou sua pesquisa é o fato de serem periféricas. Além do Brasil, ela observou, em países como Angola, Moçambique, Guiné-Bissau, Cabo Verde e Portugal, narrativas de jovens artistas que falam de temas que afetam a sociedade contemporânea. Entre elas, questões que tratam de agressão e opressão a mulheres são constantes, bem como o racismo (no Brasil), a xenofobia (em Portugal) e a situação dos países africanos pós-independência e guerra civil.

“O slam hoje tem um recorte de gênero e racial muito forte, além de outras opressões. Slams de países africanos já são periféricos por serem uma literatura que não chega aos ditos grandes centros, mas não necessariamente é quem mora na periferia do território que faz”, explica. Segundo a pesquisadora, além de entender que certos espaços e identidades são periféricos por si sós, vale ressaltar que a escrita, por ser uma tecnologia à qual nem todos têm acesso, é associada a uma posição de superioridade e centralidade também. “É importante notar que a oralidade é vista como periférica no mundo”, defende ela.

Como contraponto, Miriane aponta as diferenças entre os países. Enquanto a maioria dos slams brasileiros acontece em espaços urbanos, como ruas e praças, e tem uma expectativa de popularização, no exterior existe uma dinâmica associada à cobrança de ingressos que acaba sendo um pouco mais seletiva. “O slam é uma plataforma muito forte no Brasil, de forma muito intensa. Não é assim em todos os lugares, mas aqui tem um formato que pegou e que tem a ver com a nossa cultura de rua. E a gente conta com algumas políticas públicas que apoiam esses coletivos”, revela.

No mês de outubro, a Festa Literária das Periferias (Flup) aconteceu na Gamboa, zona portuária do Rio de Janeiro, e recebeu seis campeonatos de slam, entre eles o Slam de Cria e o Campeonato Mundial de Slam (World Poetry Slam Championship, WPSC). O primeiro é nacional e oportunizou a seis jovens brasileiros desenvolverem seu processo criativo e competirem em uma disputa com representantes de todo o país. Já o segundo é um campeonato de slam mundial que trouxe para a cidade mais de 50 poetas competidores de diversos países do mundo.

Responsabilidade e vulnerabilidade

O WPSC surgiu como forma de questionar o funcionamento da Copa do Mundo de Slam (Poetry Slam World Cup), que acontece anualmente na França desde 2004. Apesar da participação de poetas do mundo todo, o histórico de vitórias mostra que os ganhadores usualmente são representantes de países do hemisfério norte, o que vai contra a natureza periférica do gênero.

Diante desse movimento, os organizadores do WPSC desenvolveram um formato itinerante e mais democrático. No ano passado, o evento foi realizado na Bélgica, no continente europeu; neste ano foi no Brasil, América do Sul; e ano que vem a edição acontecerá no Togo, África Ocidental. Essa é uma das características que descentraliza a competição e que os participantes defendem como uma das razões para que, pela primeira vez, uma pessoa da América Latina vencesse um campeonato de slam mundial: a vencedora foi a colombiana Lady la Profeta, com suas falas políticas sobre ser uma mulher e artista independente.

“Ser poeta na América Latina é uma responsabilidade. Suas palavras têm peso onde as balas viajam mais rápido que sonhos. Ser poeta é afiar seu dialeto para abrir o diálogo e aterrissar a fúria do momento”.

Lady la Profeta

A participação de uma experiência em comunidade chegou para os poetas como um fortalecimento. Entre eles, podia-se sentir a alegria da troca  com outros slammers que compartilhavam a mesma paixão, apesar das diferentes realidades. João Borges Namelo, representante de Moçambique, conta que esteve nas duas competições neste ano – na França e no Brasil –, mas que a experiência que vivenciou no Rio de Janeiro o transformou e o tocou profundamente, embora não tenha entrado no pódio.

“O sentimento não foi de perda. Acredito que, depois do que vivi, o poeta em mim vai se maximizar. Foi um slam de muita reflexão, porque eu me baseava na vivência do meu país e percebi que tinha que me abrir e ser um bom leitor do mundo. Consegui entender a dimensão da poesia. Em todos os poetas sentia algo que saía do individual e ia para o coletivo”, compartilha o estudante de Relações Internacionais de 22 anos.

O poeta Eddie Lartey mostrou que a poesia é transversal às existências, pois ajuda a traduzir realidades muitas vezes não vistas. Garantindo o quinto lugar no campeonato mundial, ele veio representando o Canadá oficialmente, mas também a sua outra nacionalidade, a de Gana. Ele acredita que as vivências artísticas do país africano e as culturas da oralidade e da musicalidade também são responsáveis pela maneira de encontrar caminhos novos para se expressar. Seus versos falam da experiência como homem negro.

“Essa foi a melhor maneira que eu encontrei de me expressar, sendo honesto e vulnerável. Uso muitas metáforas para ajudar a explicar o que estou falando. Para mim, é importante usar o espaço para fazer pessoas como eu se sentirem amadas”, explica ele.

“A escuridão do céu chora quando ninguém está olhando. O orvalho é o resíduo de tudo o que a noite tem de solitário. Todas as noites o céu afoga a grama em lágrimas. E é assim que os homens negros lidam com a depressão”.

Eddie Lartey

Poesia da presença

De volta ao Brasil, após batalhas online, o Slam de Cria reuniu na Flup, no Rio de Janeiro, seis finalistas representantes de diversos estados do país. Mas não foi só sobre competição. O processo online também contou uma jornada focada no desenvolvimento criativo e na transmissão de aprendizados sobre a história do movimento com slammers, escritores e poetas.

A maranhense Brena Maria, de 24 anos, foi a única representante do nordeste no palco naquele dia 22/10. Para ela, ganhar o prêmio de primeiro lugar foi muito representativo e emocionante, principalmente em virtude dos temas que aborda em suas poesias. “Ganhar falando sobre os orixás, grilagem de terra e ancestralidade diretamente de Gancharia, bairro periférico de São Luís, no Maranhão, para o Rio de Janeiro… É uma sensação incrível”, comemora.

Para Miriane Peregrino, cada poeta de slam tem a sua forma de criar. Alguns escrevem no papel, outros criam diretamente por meio da fala. Mas uma característica marcante, tanto para o slammer quanto para o espectador, é o momento da performance, o que ela chama de “poesia da presença”. “Se você assistir ao mesmo poeta em diferentes meios, ele se adapta de acordo com o que vai colar com o público daquele local. É uma poesia da presença. Tem uma áurea do presente, do momento em que está sendo dito”, completa a professora da disciplina Poetry slam em falares portugueses.

Em comum, a quebra de tabus e a expansão de uma poesia que mais do que falada é, antes de tudo, vivida: em diferentes corpos, vozes, espaços e mundos.

“Slam é uma performance visual, literária, teatral. Uma linguagem que abraça muitas outras, uma linguagem das ruas. E essa linguagem me dá abertura pra ser quem eu de fato sou: Brenna Maria, que é filha, estudante, mulher negra periférica, que sofre, é feliz e canta. Me permite mostrar aquilo que eu sou, através do corpo presente”.

Brena Maria

Fonte: https://conexao.ufrj.br/2023/10/slam-poesia-falada-em-vozes-perifericas/?fbclid=IwAR3i-p_BIP1BeXZI5iIA2zVb2tJmp7ZAGu2qe62u5JU9B-oqs4LB7aQEaCQ