JUNE 20, 2019
O Brasil de hoje é um espanto — caso de análise e psicanálise. Nossa República sempre foi portadora de sua própria negação, tanto no setor público quanto no privado, mas agora chegamos a uma situação-limite, com os ataques até ao que foi costurado pelo alto, pós-regime militar. Distopia.
O governo de extrema direita, autoritário e obscurantista, desconhece os modos elementares de administrar. Originário de uma coalizão improvisada, amalgamada em torno de rejeições, não tem equipe articulada e projeto afirmativo de nação. É liderado por um “lobo solitário” (defensor da ditadura e da tortura) supostamente “antissistema” — que, ao longo de três décadas, frequentou nove partidos. De efetivo, só construiu uma “filhocracia” patrimonialista.
O governo se sustenta pelo seu vértice personalista: Bolsonaro e os 57 milhões de votos por ele recebidos — que se esgarçam, lentamente. O presidente tosco e seu mix retrógrado de “guerra anticomunista” e ultraprivatismo se mostram, a cada dia, como um erro do sistema, um ponto fora da curva. Há crescente desconforto no “andar de cima”.
A crise vai além do Executivo. As combinações entre julgador e acusador, reveladas pelo Intercept, afetam o combate à corrupção sistêmica e expõem a frágil cultura democrática no país das transições intransitivas. Somos uma sociedade desigual e injusta, com formas de representação precárias e manipuladas.
Serviçal de Trump, o Brasil de hoje perde soberania e protagonismo na cena mundial. Internamente, o desmonte de políticas públicas é obsessão. Nunca antes neste país um governo provocou manifestos unitários e críticos de ex-ministros de administrações opostas entre si, como os de Justiça e Segurança, Educação e Meio Ambiente.
Educação sob ataque, com contingenciamento orçamentário que coloca à míngua o ensino público. O corte de cerca de 30% dos R$ 149,7 bilhões do MEC, vertical e arbitrário, foi feito sem prévio estudo técnico e sem diálogo com os representantes da comunidade educacional. Órgãos oficiais muito respeitados, como o Ipea, o IBGE e a Fiocruz, são ignorados em suas pesquisas.
O Meio Ambiente acumula ações oficiais predatórias, como a desidratação do Conama, a liberação recorde de agrotóxicos, o enfraquecimento do ICMBio e do Ibama, o questionamento do Fundo Amazônia, o desmerecimento do Inpe, a brutal redução da fiscalização. Vigora escandalosa licença para caçar, intoxicar e desmatar.
Há um ataque sem tréguas aos direitos sociais, inscritos na Constituição de 1988. Trabalhadores — 28,4 milhões sem emprego e no subemprego! — penam em drama cotidiano; povos nativos e quilombolas têm terras e culturas desrespeitadas; a truculência, a misoginia e a homofobia ganham espaço. Os direitos humanos são desprezados, e o armamentismo pessoal é estimulado, avultando o “espírito de milícia”.
Na contramão das prioridades, o governo se apressa em flexibilizar as leis de trânsito, desconsiderando comprovadas reduções de acidentes e mortalidade graças ao controle mais rígido da velocidade e aos equipamentos de segurança nos veículos. Patético!
A propalada busca do “equilíbrio das contas públicas” tem embocadura torta: não se avança nas propostas de uma reforma tributária progressiva, não se vota a regulamentação do teto remuneratório dos servidores públicos. A chamada “Nova Previdência” chegou velha no seu intuito original de atacar benefícios básicos dos mais pobres, além de indicar uma “capitalização” individualista que quebra a solidariedade intergeracional.
A doutora Nise, entretanto, receita: nada de paralisia! É preciso organizar a indignação e contagiar a utopia, sob pena de nos desconstituirmos como nação. Este retrocesso irracional não terá vida longa.
Chico Alencar é professor e escritor
Fonte: https://outline.com/anE6Cx