Memória não prescreve nem se apaga

Não podemos nos deixar aprisionar pelo negacionismo, seja este fruto de palavras ou esquecimentos

Por Lygia Jobim

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O direito ao esquecimento, direito que uma pessoa julga ter de não permitir que um fato verídico, ocorrido no seu passado ou de sua família, seja relembrado e exposto ao público por causar-lhe vergonha ou sofrimento, está sendo agora julgado no Supremo Tribunal Federal. Ocorrendo sua aprovação esta terá repercussão geral, ou seja, a decisão será obrigatoriamente aplicada pelas instâncias inferiores, em casos idênticos.

Previsto em nossa legislação em casos específicos, como quando esta trata de cadastros de consumidores e na legislação penal ao tratar da reabilitação dos condenados, o direito ao esquecimento tem sido discutido na Justiça em diversos pedidos de remoção de conteúdos variados. Aqueles que o defendem alegam estar defendendo os direitos à honra, intimidade, privacidade e ressocialização. A estes se contrapõem os defensores da liberdade de expressão e informação.

Não podemos esquecer que estas liberdades são as únicas capazes de proteger o direito coletivo ao conhecimento do passado, possibilitando assim o entendimento do presente e a elaboração do futuro.

Sua aprovação possibilitará que nossa história, neste momento vítima de feroz negacionismo, passe a ter lacunas à vontade dos fregueses.

Com a proibição da continuidade de sua divulgação, a pedido da família, não se poderá mais dizer que Ranieri Mazzili declarou a vacância da Presidência da República enquanto o Presidente João Goulart estava em território nacional oficializando o golpe de 64.

Alguém da família do General Castelo Branco poderá, através da Justiça, impedir que as futuras gerações saibam que em seu governo começaram as prisões, torturas, perseguições e cassações dando início a 21 anos de arbítrio.

Já os familiares de Costa e Silva poderão recorrer ao judiciário para, numa ação coletiva com os familiares dos signatários do AI 5, proibir a divulgação dos nomes daqueles que mandaram às favas os mais comezinhos escrúpulos.

Parentes de Médici, cujo governo foi o mais repressivo da ditadura, responsável pelo maior número de desaparecimentos de opositores e implacável censura à imprensa e cultura, tendo seu período na Presidência ficado conhecido como os Anos de Chumbo, podem pedir e obter que não se faça mais menção a esta faceta de seu governo.

A família de Geisel poderá pleitear que não mais se informe que, segundo documentação da CIA, ele delegou a Figueiredo o poder de dizer quem deveria ou não morrer.

Algum parente de Figueiredo poderá ingressar com uma ação para que não mais se divulgue que ele assistia a sessões de tortura.

Recentemente a família do General Leo Etchegoyen pretendeu a retirada de seu nome da relação, elaborada pela Comissão Nacional da Verdade, de agentes públicos responsáveis por graves violações aos direitos humanos ocorridas durante a ditadura. O Tribunal Regional Federal da 4ª. Região – TRF-4 – negou o pedido.

No futuro, os filhos do tenente 00, os 01, 02 e 03, poderão exercer o direito de pleitear que não se diga ter ele sido responsável, já que ultrapassamos a marca de 230 mil vítimas pela Covid-19, por algo que hoje podemos imaginar como sendo ao menos 200 mil mortes.

Da mesma forma poderão querer apagar suas declarações racistas, homofóbicas e misóginas. Seu gosto pela morte e fixação em armas e em armar a população. Poderão querer apagar para sempre todos os vídeos em que exibe com orgulho seu palavreado chulo, sua grosseria e falta de noção da mais elementar educação.

O dito nos dois últimos parágrafo é mero exercício de imaginação, pois os quatro se comportam da mesma forma e precisam de uma arma para demonstrar que são alfa quando, na verdade, nada mais são do que an alfa betos.

Para a memória de um país não importa o tempo decorrido entre o fato e sua reprodução e elaboração. Ela deve sempre ser preservada e difundida para que possa moldar a consciência e luta pacífica de um povo por igualdade e liberdade. É seu conhecimento que nos permitirá construir um futuro digno. Não podemos nos deixar aprisionar pelo negacionismo, seja este fruto de palavras ou esquecimentos.

Assim, esperamos todos que o STF mais uma vez cumpra seu dever de zelar pela Constituição e garanta a liberdade de expressão e informação.

 

Fonte: https://www.cartamaior.com.br/?%2FEditoria%2FAntifascismo%2FMemoria-nao-prescreve-nem-se-apaga%2F47%2F49879#.YCAf0Fv7cbs.whatsapp